terça-feira, 16 de julho de 2019

Fagulha


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.



Ana Cristina César (1952-1983) foi uma das grandes promessas da literatura brasileira que partiu do mundo precocemente, aos apenas trinta e um anos de idade, cometendo suicídio após um longo histórico depressivo. A jovem autora carioca, no entanto, deixou um riquíssimo legado que desde então jamais foi esquecido.
Em 2016, pela colaboração da sua obra dentro da historiografia literária brasileira, foi homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty.
Ver mais aqui





=====
Poema - aqui

4 comentários:

  1. gosto muito da "irreverência" que se me afigura no belo poema e que bem se exprime no risco e na ousadia de "abrir o céu" (ainda que filtrado pela luz coada das cortinas).

    mas o Céu não se conforma com meias medidas e, então, fica a saber-se que "virar pelo avesso" pode ser fatal.

    ... e, assim sendo, lá se vai, sem apelo, o esmerado cuidado das cortinas protectoras.

    gostei muito de conhecer esta excelente Poeta brasileira
    mas uma vez grato, amiga Olinda

    abraço

    ResponderEliminar
  2. deve ler-se "mais uma vez grato..."

    ResponderEliminar
  3. Conheci Ana Cristina
    em um documentário do Canal Brasil...
    Obra intensa e uma história intensa...

    Abraço imenso minha amiga...
    Aluísio Cavalcante Jr.

    ResponderEliminar
  4. Querida Olinda, gostei muito de conhecer estas poetisa brasileiras , mais profundamente e, quando tiver mais tempo pesquisarei mais sobre elas. Sabes, tenho tido a casa cheia e ontem regressou ao Brasil a minha sobrinha, com grande tristeza dela e nossa, mas...nada a fazer..a vida assim manda. Domingo chega o irmão e respectiva família e, claro, o temoobpara o bloga vai continuar curto. Virei sempre que puder, querida Olinda, para assim " elaxar um pouquinho " no aconchego deste xaike macio. Um beijinho e espero que estejam todos bem aí em casa. Tenho-me sentido muito mimada com os meus netinhos cá. Até ...
    Emilia

    ResponderEliminar