segunda-feira, 10 de junho de 2019

Nhô Chic'Ana

Uma angústia profunda tomava conta de mim, Nhô Chic'Ana morreu de fome. Senti vontade de gritar, para que todos ouvissem. Nhô Chic'Ana morreu de fome. À direita, à esquerda, a vista era a mesma. As mesmas hortas, nuas no seu chão de barro e comidas pelos gafanhotos. (...)

Aproximei-me da cama. Nhanha Bonga recebeu-me com grande admiração de choro. Ah Chiquinho! Tinha morrido o meu grande amigo. Que iria Chiquinho fazer doravante na casinha do Campo? Nhô Chic'Ana não botaria mais aqueles exemplos que tanto me entretinham.

Nhô Chic'Ana estava todo mirrado, seu corpo magro a perfurar de ossos a manta que o cobria. O meu velho amigo morreu de fome. Encostei-me à cama, a cabeça tomada nas mãos angustiadas. Os meus dias de infância povoados da presença de nhô Chic'Ana. Ainda o vi, de corpo mais válido, na labuta da lavoura. Nas tardes, eu vinha à casinha do Campo. Nhô Chic'Ana fazia-me hominhos de barro, que ele baptizava com nomes da história de Carlos Magno. Outras vezes, talhava-me navios de purgueira. E o meu regalo era correr os navios no tanque de Jejê com os companheiros. Nhô Chic'Ana contava-me casos da sua vida de marinheiro, as terras que ele tinha conhecido. As suas palavras eram lentas, sentenciosas, pedia ao velho que me contasse histórias:

- Nhô Chc'Ana, você conte um caso...
- Não tem tempo...
- Conte, nhô Chic'Ana!
- Nhor não, contar histórias de dia faz pelar a capela dos olhos...
Mas eu conhecia-lhe o fraco. Tirava da algibeira um bocado de erva para fumar, e logo nhô Chic'Ana estendia a mão.

E começava. Antigamente tinha uma casa no fundo do mar (...)

Sérgio Godinho e Tito Paris


As chuvas de Cabo Verde


Meus amigos.

Sei que este post deveria ser dedicado à continuação do tema sobre Gungunhana e poderia fazê-lo, mas tive agora um apelo a que não pude resistir. Há muito tempo que queria reler Chiquinho, de Baltasar Lopes (da Silva). Surgiu-me, por estes dias, uma quase obrigação de o voltar a ler, a Teresa Baltasar que me perdoe a expressão porquanto ler e estudar esse Grande Senhor das letras cabo-verdianas é um privilégio para mim. Baltasar, um dos Claridosos, também poeta, já nos visitou aqui no "Xaile", com o poema Ressaca

Venham todas as vozes, todos os gritos e todos os ruídos;
Venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos;
Venham todas as coisas que eu não consigo ver na superfície da sociedade dos homens;

Venham todas as areias, lodos e todos os fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis;
Venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras;
Venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos apropriados; (...)

O certo é que cheguei ao capítulo 15, quase no fim do livro, e deparo-me com aquela parte lancinante das grandes fomes que devastaram Cabo Verde nas décadas de 40 e 50*. Desfilou perante os meus olhos a procissão de um povo paciente, confiante no poder de Deus porque o dos homens não lhes valia. Encontrei referências à pequena caminhada de protesto de alguns populares à Administração do Concelho, com dois garotos levando ao alto blusas pretas espetadas em paus, rebeldia essa que morreu logo ali. Penso que esse episódio viria mais tarde a inspirar o saudoso Gabriel Mariano no seu poema interventivo, "Capitão Ambrósio", do qual transcrevo uma pequena passagem:

1
Bandeira
Negra bandeira
Bandeira negra da fome.
Em mãos famintas erguidas
Guiando os passos guiando
Nos olhos livres voando
Voando livre e luzindo
Inquieta e livre luzindo
Luzindo a negra bandeira
Clara bandeira da fome.

Mãos erguidas 
duras erguidas 
pés marcando a revolta
o povo marcha na rua.
(...)


As secas, o período das as-águas rareando ou não assegurando as colheitas, a miséria crescente, o descaso da Administração Central que viria a optar pela solução das grandes LEVAS de cabo-verdianos para São Tomé e Principe, sob a expressão eufemística de Contrato, marca a Literatura Cabo-Verdiana de forma indelével. As levas para essa ex-colónia ter-se-iam iniciado já em 1903.


Desejo-vos uma boa semana.


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Chiquinho - Baltasar Lopes da Silva
Excerto - pags - 256 a 258

Excerto "Capitão Ambrósio" - Gabriel Mariano

in No Reino de Caliban de Manuel Ferreira
P.176 a 179

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ARBÍTRIO NAS ROÇAS as primeiras levas de caboverdianos em S. Tomé e Príncipe nos primórdios de novecentos por Augusto Nascimento* aqui

*E em anos precedentes. A acção do romance decorre nos anos trinta.

12 comentários:

  1. Uma publicação brilhante :)) Parabéns.

    Peço desculpa pelo atraso mas estive uns dias de folga ;))

    Hoje:-Deambulando pela natureza, sem chão

    Bjos
    Votos de uma óptima Segunda - Feira.

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  2. Com três registos diferentes na forma, mas todos eles a denunciarem a vida difícil, principalmente no tempo das secas, em que morriam pessoas e animais…
    Como já disse, ando um pouco ausente das literaturas africanas e tenho que remediar isso…
    Um beijo, minha Amiga Olinda.

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  3. num registo de escrita sensivel e despido de ornamentos, (quase murmúrio íntimo) este texto é uma expressiva síntese dos padecimentos do povo de Cabo Verde (as secas, a miséria, a fome, o arbítrio colonial das "levas") e mais um exemplo da aguda percepção da literatura caboverdeano como "território" de "resistência" cultural e, em consequência, como instrumento de formação de uma específica consciência colectiva que, se não estou enganado, se irá projectar nas lutas pela independência do País

    espero poder, em breve, ver estes apontamentos e reflexões publicados em livro, o que na minha perspectiva, constituirá um verdadeiro serviço que amiga Olinda presta à cultura dos dois países.

    abraço

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  4. Uma vida muito difícil que conheci de perto, não em Cabo Verde mas no norte de Moçambique. Moçambique é também um país de secas e cheias. Anos seguidos de seca a que se seguem normalmente um ano de muitas cheias que acaba destruindo o pouco que a seca não matou.
    Abraço e uma boa semana

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  5. Querida amiga
    Comecei a ler e fiquei maravilhada porque não conhecia . A beleza da linguagem tão simples que toca o infinito do belo na sua mais pura essência , fez querer conhecer mais e melhor a relíquia que hoje me enriqueceu .
    O conteúdo é o que se espelha na narrativa e no maravilhoso poema .
    Grande contributo .
    Beijinho , Olinda ❤️

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  6. Gostei muito e não conhecia! Valeu muito ler! beijos, lindo dia! chica

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  7. Como a Graça, também " ando ausente das literaturas Africanas e tenho de remediar isso", mas, tenho sempre este 'Xaile " para me lembrar que é importante que comece a interessar-me mais, pois só assim poderei conhecer este povo tão sofrido, não só pelos " caprichos" da mãe natureza, como também por maus governantes que pouco fazem para dar condições de vida mais dignas ao seu povo. Adorei e fiquei, como sempre, mais enriquecida. Obrigada, Olinda e espero que estejam todos bem ai em casa. Aqui está tudo bem e esta semana tem havido muita festa aqui em Famalicão, as tradicionais festas Antoninas; hoje tivemos as marchas e amanhã é feriado. Um beijinho e boa noite, querida Amiga
    Emikia

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  8. Boa Noite .
    O tempo foi passando ainda sem recuperar
    totalmente dos problemas mais com esforço
    e fé poderei chegar onde eu parei.
    Agradeço a Deus por ter amizade tão sincera
    que tanto significa para mim .
    Em algum lugar desse mundo tenho
    amizade que poço contar para sempre.
    Aqui deixo um afetuoso abraço.
    Saudades....Evanir.
    Estou levando as mesmas palavras por onde passar
    é uma mensagem que estou a deixar com
    cada um de vcs que tenho no coração bem guardados.

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  9. Conheço muito mal a literatura cabo-verdiana, mas este excelente post despertou a minha atenção. Os excertos foram muito bem escolhidos, pois são deliciosos.
    Olinda, um bom fim de semana.
    Beijo.

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  10. Que encanto de publicação, querida Olinda!
    Tens um jeitinho especial de compartilhar o que vais sabendo.
    Gosto do que aqui aprendo e do estímulo para procurar mais informação sobre os temas.
    Gosto do aconchego do teu Xaile.
    Beijo, bom fim-de-semana.

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  11. Páginas muito tristes da história de Cabo Verde
    que os poetas não deixam apagar e que fez bem
    assinalar... É um perigo que ronda sempre
    o arquipélago...
    O meu abraço afetuoso.
    ~~~~

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  12. São feridas abertas.
    "Venham todas as vozes, todos os gritos e todos os ruídos;..."

    Reforço a ideia do Manuel Veiga: há, no seu blogue, história, poesia e reflexão de inegável interesse.

    Beijos, amiga Olinda.

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