sexta-feira, 28 de junho de 2019

Moçambicanidade - as línguas nacionais e a língua portuguesa

Que é isso de moçambicanidade, caboverdianidade, angolanidade, portugalidade ... ? Uma afirmação, uma vontade, uma necessidade, penso. Necessidade quase visceral, essa vontade de se afirmar a autodeterminação em relação ao outro. E no que diz respeito às ex-colónias creio que lhe estão subjacentes os conceitos/movimentos de negritude e pan-africanismo, que já aqui abordámos ainda que de forma breve. 

Mas acontece outro fenómeno, se é que se pode chamá-lo desse modo: ultrapassada a fase do colonialismo a premência coloca-se dentro dos próprios territórios independentes, uma espécie de tomada de consciência no quanto será possível chamar a si os parâmetros da sua cultura, da língua, história e nela a criação dos próprios mitos, numa busca da identidade nacional. Já antes, poetas como Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha e outros desbravavam o caminho que viria a desembocar na proclamação dessa Pátria que tanto desejavam.

E quando não se tem apenas uma língua, mas dez, trinta, quarenta ou mais? Como fazer para nos entendermos? Essa multitude de idiomas verifica-se na Guiné-Bissau, em Moçambique, em Angola (onde já se conhecem acções no sentido de se ensinar nas escolas seis de maior expressividade): línguas de origem bantu, grupo etnolinguístico que abarca o continente africano, principalmente desde o sul do Sahara  e que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes.

E é assim que:



Moçambique acorda no pós-independência com um problema entre mãos. E agora? Como falar a todos de modo a fazer passar a mensagem, do Rovuma ao Incomati, território preconizado e querido desde há muito? Esse território cujo berço é preenchido por mais de quarenta línguas e outros tantos usos e costumes, ainda que aparentados, necessitava de algo em comum e que facilitasse a vida aos políticos. Assim, Samora Machel vê na língua portuguesa o elo que lhe faltava. Proclama-a língua do Estado, estatuíndo-a como língua de unidade nacional e, naturalmente, com a obrigatoriedade de ser utilizada em todos os actos públicos, em todas as instituições, 
em todas as repartições, em todos os discursos, 
em todos os contactos.


Era precisamente o idioma que veículava as ideias dos intelectuais, a única ensinada nas escolas, e que aos poucos iam mesclando de palavras e expressões das respectivas línguas maternas. Língua viva que no quotidiano é enriquecida de novos vocábulos e também falada por poucos, cerca de metade da população ou apenas pelas elites da terra. Um paradoxo e factor de exclusão - diz-nos Ricardo Mudaukane. 

Exclusão essa que afecta todos os domínios do país: a nível político e económico, poucos são os moçambicanos que têm acesso ao teor do discurso político e a oportunidades de emprego e até de negócio que, infelizmente, é quase que exclusivamente veiculado e processado através da língua oficial. A nível social, e como se sabe, nalguns círculos de interesse, o não domínio da língua oficial, principalmente no contexto mais urbanizado, pode levar a que certos grupos de pessoas se vejam marginalizados.*



No que diz respeito ao ensino básico, os meninos falam as suas línguas maternas até irem para a escola, deparando-se depois com uma língua completamente estranha, na maior parte das vezes, com o ónus de terem de fazer nela a sua estrada, condicionando a sua vida profissional, no futuro. Por isso, já se discute seriamente a forma de se alterar esse estado de coisas e até há quem fale em se "livrarem" do português, não no sentido literal mas de modo a incluí-lo num sistema mais alargado onde as línguas maternas** também tenham o seu lugar, de direito.


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E como adoro a Língua Portuguesa e admiro imensamente a carta escrita por António Ferreira, Sec. XVI, ao seu amigo Pêro de Andrade Caminha, defendendo o seu uso em vez do castelhano, pelo que penso: à chacun son Everest, aqui deixo um excerto da mesma:


Floreça, fale, cante, ouça-se, e viva
A Portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram:
Esquecimento nosso, e desamor.

Mas tu farás, que os que a mal julgaram,
E inda as estranhas línguas mais desejam,

Confessem cedo ant´ela quanto erraram.
E os que despois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Porque eles para os outros assi sejam.


In: Carta III
aqui

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Queiram ler, se lhes interessar:

Bantus
- Línguas de Moçambique aqui

*A língua portuguesa é factor de exclusão em Moçambique - 
27 de Julho de 2014, 3:31 aqui

- Mia Couto - A língua portuguesa em Moçambique - Ciberdúvidas aqui
Texto publicado na antologia galega "Do músculo da boca", Ed. Encontro Galego no Mundo, Santiago de Compostela, 2001.

- Ensino bilingue em Moçambique aqui - Ângela Filipe Lopes - Faculdade de Letras da Universidade do Porto Centro de Linguística da Universidade do Porto (Portugal) 
Maria da Graça L. Castro Pinto - Faculdade de Letras da Universidade do Porto Centro de Linguística da Universidade do Porto (Portugal)

-Em Moçambique, idioma Português se mistura com as línguas maternas - Folha de São Paulo - aqui

**  Línguas nacionais são receita de sucesso nas escolas moçambicanas: aqui


Imagem - daqui

3 comentários:

  1. Desde Camões a Pessoa
    Que se escreve Lusitano.
    Podemos ter coisa boa
    Sem o tal ar puritano
    Do Acordo que destoa.


    Belo texto. Magnífica e oportuna reflexão.


    Beijo
    SOL

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  2. Queridos leitores amigos,

    já está no blog o capítulo 2 de "Variações em Quadrilha", que vos convidamos a ler.
    https://contospartilhados.blogspot.com/2019/06/variacoes-em-quadrilha-capitulo-2.html

    Com votos de excelente fim-de-semana,
    saudações literárias!

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  3. Muito interessante:))

    Hoje:-Inconsciência Desmedida

    Bjos
    Votos de bom sábado e um óptimo fim-de-semana.

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