segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

23. ESPERANÇA

            I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
17-6-1929

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Esta
mpa, 1993. - 106

===

Este poema, lindíssimo, "Dá-me lírios, lírios/E rosas também", foi-me indicado por pessoa amiga. E fui à procura dele. Mas, surpresa das surpresas para mim, tem uma segunda parte, que também transcrevo, numa toada completamente diferente mas não menos belo. (Um dia hei-de folhear o livro onde se encontra inserido).

E assim, sem mais, termina com "Boa noite na Austrália!". Ou teria alguma razão de ser no momento em que o poeta escrevera o poema?

Na actualidade, na Austrália pessoas e animais atravessam momentos aflitivos, martirizados por incêndios sem fim à vista. E a terra privada do seu húmus, secada até às entranhas. 

Se a esperança é a ultima a morrer...parece que já não restará muito mais. 


Boa segunda-feira, meus amigos


Abraços.





Versão da bela canção de Roberto de Carlos, por
Raquel Tavares, fadista, que decidiu interromper ou pôr fim à sua carreira musical.
Desejo que ela encontre o caminho que deseja percorrer e por que tanto anseia


=====

O título do post - 23.Esperança - Tal como aparece na fonte
Subtítulo - POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA - daqui

O interessante é que há outro poema, provavelmente também de
Álvaro de Campos, com este título: DAI-ME ROSAS e LÍRIOS,
Noutra ocasião, trá-lo-ei aqui para o Xaile..
Imagem - pixabay

14 comentários:

  1. Lindos os poemas e parece veio a calhar com a situação na Austrália onde esperança não pode faltar! Tristeza! bjs, chica

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  2. Obrigada pelos belos poemas . Austrália não terá uma 'boa noite', mas a esperança como bem diz ainda resiste.

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  3. Querida Emília

    Penso que eliminei o teu lindo comentário, sem querer.
    Devo ter carregado no sítio errado e, pronto, já se
    sabe, depois disso não se consegue anular o gesto.

    Peço-te mil desculpas.

    Beijinhos

    Olinda

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    1. Querida Olinda, não tem importância nenhuma. As novas tecnologias pregam-nos dessas partidas e não há nada a fazer. Comigo já aconteceram coisas parecidas. Um beijinho e até breve.
      Emilia

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  4. Um poema lindo pelas palavras e pela mensagem... que continua muito atual... algo vale pela vontade em dar/fazer e o mundo necessita desse espírito.

    Custa-me ver o que se passa na Austrália, tinha esperança de terem maior capacidade de resposta.

    Beijinhos

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  5. Ler Álvaro de Campos é sempre como se fosse a primeira vez. Gostei imenso do poema "dai-me lírios e rosas também". O outro poema deixou-me encantada.
    "Tudo na vida
    Se faz por recordações.
    Ama-se por memória." É tão verdade isto…
    Que a esperança esteja com os australianos porque bem precisam dela para acreditarem que aquilo que lá se passa não é o inferno…
    Uma beijo, minha Amiga Olinda.

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  6. São dois poemas mimosos que dizem do que poderia ter sido e não foi. É um diálogo interior como um sonho que advém do desejo.

    O sonho de ir à Austrália também parecia longínquo e agora, com ele, ardemos um pouco.

    Muito adequado o tema e bela voz de Raquel Tavares. Terá as suas razões para mudar de vida.

    Grande abraço, querida amiga Olinda.

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  7. Querida Olinda
    Que maravilhoso poema!
    Deliciei-me a lê-lo.
    Refiro-me ao primeiro, embora o segundo seja igualmente belo.
    É claro que a vida é feita, essencialmente, de recordações.
    Que seria de nós (de mim...) se não fossem as recordações? É através delas, e por elas, que os nossos entes queridos continuam connosco, acompanhando-nos a passo e passo.

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS



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  8. Uma escolha perfeita, os dois poemas são lindos, conhecia apenas o primeiro.
    Olinda, desejo-lhe um ano 2020 pleno de tudo de bom.
    Beijinhos

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  9. Gostei muito desta postagem muito equilibrada e harmoniosa.
    Porém, na verdade, não simpatizo com a personalidade criada por Pessoa para Álvaro de Campos... 'Carpe diem!'
    Compreendo que os heterónimos eram personalidades do seu tempo.

    Não sabia que Raquel Tavares tinha interrompido a carreira, lamento, gosto de ouvir a sua bela voz de contralto.

    Dias de Janeiro muito confortáveis.
    Beijinhos, querida Amiga.
    ~~~~~

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  10. 1 - que sempre tenha, minha amiga, "lírios e rosas para dar..."
    e muitos mais para receber...

    2 - o "coração anda aos trambulhões" é mesmo de guardadores de rebanhos (Caeiro), dos contadores de estrelas e ... e dos poetas, está claro.
    pelo menos daqueles que não tecem loas a eles próprios.

    apreciei imenso, Olinda, esta magnífica partilha.
    excelente a música.

    abraço

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  11. Molto bello il video, non la conoscevo.
    Buona giornata.

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  12. Embora o meu preferido seja o Alberto Caeiro, gosto bastante do Álvaro de Campos.
    Gosto imenso de ouvir a Raquel Tavares e fiquei bastante surpreendida com a notícia do seu abandono da carreira artística, mas ela lá saberá das suas razões, e as pessoas só devem fazer o que as torna completas e felizes.
    Abraço

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  13. Bela escolha dos poemas, minha amiga Olinda!
    É sempre prazeroso ler os nossos poetas.
    Quanto à decisão de Raquel Tavares, lamento porque lhe reconheço talento, aceito porque não deve ser fácil a vida na ribalta.
    Beijo, querida amiga.

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