Os meus pés nus já palmilharam montes e vales e caminhos de cabra incrustados em rochas abruptas e levadas secas desenhadas em precipícios. Achataram-se em solos de cascalhos e de vidros partidos. Comi solas de sapatos demolhadas em suor e lágrimas. Em lugares quase ermos, sem recursos, levantava-me de noite à procura de socorro quando filhos meus se engasgavam e ardiam em febre. Em desespero, esburaquei as paredes da minha casa com as unhas em sangue quando alguns deles partiram para sempre, sem que para isso o ser supremo me desse uma razão plausível. Com os olhos cansados e enevoados já perscrutei os céus, caminhando pela estrada de santiago, via leitosa, em busca de sinais de nuvens prenhes dispostas a deixar cair o líquido precioso para a renovação e despertar da terra sequiosa. Por elas esperei vezes sem conta. Teimosas e sovinas deixariam cair algumas gotas. Antes que estas desaparecessem nas entranhas subterrâneas apressava-me a lançar as sementes que, contentes, germinariam. Sachando e mondando, tudo vicejando, a segunda fase do precioso líquido não marcaria presença, tudo mirrando e secando. Os ventos avaros carregariam as nuvens, levando-as para paragens desconhecidas. Vi estiolarem-se vidas numa sequência esmagadora. De lábios gretados e abdómenes inchados pela fome fariam a sua passagem para além desta vida terrena. Vi entes queridos partirem para longe. Lembro-me de um deles fazendo a sua despedida ao som do seu clarinete, a figura jovem, de fato branco, congregando atrás de si crianças e populares. Nunca mais voltou. A vida não lho permitiu. De todas as lembranças é a que mais me marcou. Não sei porquê. Mas nada aquebranta a minha esperança. Dos filhos que me restaram e da vida que me resta espero ainda grandes coisas. O quê não sei. On verra.
O velho homem calou-se e olhou para mim. Tomou-me as mãos e apertou-as contra as suas. Depois pegou no terço e começou as passar as contas, movendo os lábios em silêncio. No seu olhar via-se todo o mistério do mundo.
Meus amigos, desejo-vos uma boa semana.
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Nota:Compus este texto a partir de situações reais, de que tomei conhecimento de muito perto. Olinda
Imagem:daqui
Querida Olinda, que bem que escreve e que bom podermos contar com a sua escrita!
ResponderEliminarEntretanto, já leu as notícias? :)
Beijinhos
Um texto rude, cortante, que nos penetra até ao âmago, e rasga a nossa emoção, deixando-nos petrificados. Muito bom, Olinda..
ResponderEliminarUm abraço e uma boa semana
A Olinda lembrou-me Alves Redol neste seu esplêndido texto! Parabéns!
ResponderEliminarTenho de ler Uma Campanha Alegre, é dos poucos que me faltam de Eça de Queiroz..
Beijinhos
Mais um excelente texto
ResponderEliminarGrato pela partilha
Bj
Gostei de ler. Saboreei a beleza das frases que desenham a vida dura de muitas pessoas à nossa beira. Agradeço esta deliciosa partilha.
ResponderEliminarOlá, Olinda;
ResponderEliminarVocê sabe como tocar em nossos corações com suas postagens!
Amei!
Fique com DEUS e que ELE te abençoe sobremodo!
Abraços da sua Cia. De Teatro Atemporal!
Clemente.
www.ciaatemporal.com.br
Palavras fortes e belas, numa beleza que só a realidade nos consegue dar. Entrou-me cá dentro e bateu no meu coração, gostei muito :)
ResponderEliminarLi há pouco tempo "A Morgadinha dos Canaviais". Já tinha o livro há anos, desde a adolescência, mas apesar de o ter começado a ler duas ou três vezes anteriormente, só agora o li do início ao fim. E gostei muito :) Achei que Júlio Dinis conseguiu fazer futurologia, pois identifiquei lá comportamentos que ainda hoje se usam, infelizmente.
Beijinhos e uma boa semana!
Amiga querida, venho deixar meu fraterno abraço e reiterar meu apreço e admiração por ti e teu querido blogue.
ResponderEliminarA vida pode, sim, ser muito dura.
ResponderEliminarTive ocasião de comprovar isso em várias situações .
O interior( mas que é o interior num país com três palmos de largura?) está entregue a si mesmo e ao seu isolamento
Carissima OLinda , parabéns pelo texto e um enorme abraço
A imagem é linda e ilustra bem o texto. Mas o texto é maravilhoso. Comovente. Intenso. Tem algum livro editado? Porque escreve maravilhosamente.
ResponderEliminarBjs
É sempre um prazer vir aqui ler.
Isabel Gomes
ResponderEliminarO sol é para as flores o que os sorrisos são para a humanidade.(Joseph Addison)
Obrigada querida, pela visita carinhosa!
Um doce abraço, Marie.
Gostei muito do texto. Sentimos a realidade de um grande número de pessoas nessa descrição de vidas sofridas e tristes. Ficou ótimo!!! Bjs.
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