terça-feira, 27 de outubro de 2015

Caminhos de pedras e de abrolhos




Os meus pés nus já palmilharam montes e vales e caminhos de cabra incrustados em rochas abruptas e levadas secas desenhadas em precipícios. Achataram-se em solos de cascalhos e de vidros partidos. Comi solas de sapatos demolhadas em suor e lágrimas. Em lugares quase ermos, sem recursos, levantava-me de noite à procura de socorro quando filhos meus se engasgavam e ardiam em febre. Em desespero, esburaquei as paredes da minha casa com as unhas em sangue quando alguns deles partiram para sempre, sem que para isso o ser supremo me desse uma razão plausível. Com os olhos cansados e enevoados já perscrutei os céus, caminhando pela estrada de santiago, via leitosa, em busca de sinais de nuvens prenhes dispostas a deixar cair o líquido precioso para a renovação e despertar da terra sequiosa. Por elas esperei vezes sem conta. Teimosas e sovinas deixariam cair algumas gotas. Antes que estas desaparecessem nas entranhas subterrâneas apressava-me a lançar as sementes que, contentes, germinariam. Sachando e mondando, tudo vicejando, a segunda fase do precioso líquido não marcaria presença, tudo mirrando e secando. Os ventos avaros carregariam as nuvens, levando-as para paragens desconhecidas. Vi estiolarem-se vidas numa sequência esmagadora. De lábios gretados e abdómenes inchados pela fome fariam a sua passagem para além desta vida terrena. Vi entes queridos partirem para longe. Lembro-me de um deles fazendo a sua despedida ao som do seu clarinete, a figura jovem, de fato branco, congregando atrás de si crianças e populares. Nunca mais voltou. A vida não lho permitiu. De todas as lembranças é a que mais me marcou. Não sei porquê. Mas nada aquebranta a minha esperança. Dos filhos que me restaram e da vida que me resta espero ainda grandes coisas. O quê não sei. On verra
O velho homem calou-se e olhou para mim. Tomou-me as mãos e apertou-as contra as suas. Depois pegou no terço e começou as passar as contas, movendo os lábios em silêncio. No seu olhar via-se todo o mistério do mundo.

Meus amigos, desejo-vos uma boa semana.

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Nota:Compus este texto a partir de situações reais, de que tomei conhecimento de muito perto. Olinda

Imagem:daqui 

12 comentários:

  1. Querida Olinda, que bem que escreve e que bom podermos contar com a sua escrita!
    Entretanto, já leu as notícias? :)
    Beijinhos

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  2. Um texto rude, cortante, que nos penetra até ao âmago, e rasga a nossa emoção, deixando-nos petrificados. Muito bom, Olinda..
    Um abraço e uma boa semana

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  3. A Olinda lembrou-me Alves Redol neste seu esplêndido texto! Parabéns!
    Tenho de ler Uma Campanha Alegre, é dos poucos que me faltam de Eça de Queiroz..
    Beijinhos

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  4. Mais um excelente texto

    Grato pela partilha
    Bj

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  5. Gostei de ler. Saboreei a beleza das frases que desenham a vida dura de muitas pessoas à nossa beira. Agradeço esta deliciosa partilha.

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  6. Olá, Olinda;

    Você sabe como tocar em nossos corações com suas postagens!

    Amei!

    Fique com DEUS e que ELE te abençoe sobremodo!

    Abraços da sua Cia. De Teatro Atemporal!

    Clemente.

    www.ciaatemporal.com.br

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  7. Palavras fortes e belas, numa beleza que só a realidade nos consegue dar. Entrou-me cá dentro e bateu no meu coração, gostei muito :)
    Li há pouco tempo "A Morgadinha dos Canaviais". Já tinha o livro há anos, desde a adolescência, mas apesar de o ter começado a ler duas ou três vezes anteriormente, só agora o li do início ao fim. E gostei muito :) Achei que Júlio Dinis conseguiu fazer futurologia, pois identifiquei lá comportamentos que ainda hoje se usam, infelizmente.
    Beijinhos e uma boa semana!

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  8. Amiga querida, venho deixar meu fraterno abraço e reiterar meu apreço e admiração por ti e teu querido blogue.

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  9. A vida pode, sim, ser muito dura.

    Tive ocasião de comprovar isso em várias situações .

    O interior( mas que é o interior num país com três palmos de largura?) está entregue a si mesmo e ao seu isolamento

    Carissima OLinda , parabéns pelo texto e um enorme abraço

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  10. A imagem é linda e ilustra bem o texto. Mas o texto é maravilhoso. Comovente. Intenso. Tem algum livro editado? Porque escreve maravilhosamente.

    Bjs

    É sempre um prazer vir aqui ler.

    Isabel Gomes

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  11. O sol é para as flores o que os sorrisos são para a humanidade.(Joseph Addison)
    Obrigada querida, pela visita carinhosa!
    Um doce abraço, Marie.

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  12. Gostei muito do texto. Sentimos a realidade de um grande número de pessoas nessa descrição de vidas sofridas e tristes. Ficou ótimo!!! Bjs.

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