quarta-feira, 23 de abril de 2014

Toada do Vento Africano

Vento que vens do fundo da floresta
e não trazes a noite vestida de festa
vento que vens do lado da guerra 
sem trovas
                  sem trovas
carregado dos ecos da metralha
vento que vens como quem berra
vento que nasces nas covas
onde jazem os restos da última batalha
ó vento cheio do lamento
dos que morrem nos campos de batalha.
Vento que vens do lado da guerra
sem flores
                  sem flores
nem sementes nem chuva sobre a terra
vento que vens como um rufar de mil tambores
sem cheiro de mimosas ou pinheiros
sem o marítimo
ritmo
das cantigas dos velhos marinheiros
sem nada 
                  sem nada
sequer a pátria imaginada
feliz e livre
(que nunca tive
                   que nunca tive).

Cala-te vento.
Se continua Alcácer Quibir
eu já te disse que não quero ouvir
nem ecos de metralha
nem o lamento
dos que morrem nos campos de batalha.
Cala-te vento. Cala-te. Não digas nada.
Ou traze então um cheiro a vinho novo
um puro cheiro a cravos e mulheres
e a flor do verde pinho
e as cantigas que ficam no caminho
sempre que passa um velho marinheiro.
Traze-me tudo o que quiseres.
Mas por favor ó vento amigo vento viageiro
não tragas mais os mortos do meu povo.

MANUEL ALEGRE



       
Este poema pertence ao capítulo V-Nambuangongo Meu Amor da obra poética completa, de Manuel Alegre, com reedição aumentada em 1997 e intitulada "30 Anos de Poesia", prefácio de Eduardo Lourenço.

No passado dia 9 foi lançada a Antologia "País de Abril", com 29 de poemas do autor, alguns deles escritos antes da Revolução de 1974. É o caso do poema País de Abril escrito em 1964 e que já consta, na página 59, da obra que referi acima, isto é, de "30 Anos de Poesia".

O poema País de Abril tem um cariz premonitório em relação ao que viria a acontecer, no mês de Abril, dez anos depois. E poderia ser o tema deste post. Mas, preferi Toada do Vento Africano. Nele poderemos entrever o doloroso processo que antecede o 25 de Abril de 1974, cujas ramificações ultrapassam a revolução e o tempo presente: a guerra do ultramar e a geração esquecida que nela tomou parte. Uma quase introdução ao tema que apresentarei proximamente.


****

Notícia sobre a antologia "País de Abril": aqui

7 comentários:

  1. (^‿^)❀

    C'est BEAU !

    Merci pour ce partage chère Olinda !

    GROS BISOUS

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  2. Ainda bem que alguém se lembra de trazer aqui este poeta autor de tantos e tão belos poemas. Manuel Alegre foi um revolucionário que conseguiu dizer nos poemas o sofrimento do povo e de uma sociedade presa ao medo da tortura política.

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  3. Como o tempo parece arrastar-nos às origens pelos inúmeros comentadores contemporâneos que parecem apostados em fazer como o vento...trazer-nos os mortos deste país!

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  4. Muito belo! Memórias muito dolorosas por quem as recorda e inimagináveis para a maioria!
    Beijinhos, bom dia!

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  5. É sempre um imenso prazer ler poemas de Manuel Alegre. Obrigado pela partilha.
    Beijinhos
    Maria

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  6. "[...] Mas por favor ó vento amigo vento viageiro
    não tragas mais os mortos do meu povo."

    Os mortos voltam sempre! ...
    (V. http://acordarsonhando.blogspot.pt/search/label/Batalha e http://acordarsonhando.blogspot.pt/search/label/A%20P%C3%A1tria%20%20sou%20eu%20%20%C3%A9s%20tu...)
    ... e está lá tudo dito. O Povo que não "era" o dele!


    Beijos


    SOL

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  7. Tenho aqui um livro de Manuel Alegre, mas ainda não lhe peguei!
    Beijinhos

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