domingo, 22 de junho de 2025

Contrição





           (a pretexto de uma mulher de Portinari
           que lembra Picasso (ou Antonello?
)

Meus versos já têm o seu detractor sistemático:
uma misoginia desocupada entretém os ócios
compridos, meticulosamente debruçada sobre
a letra indecisa de meus versos.
Em vigília atenta cruza o périplo das noites
de olhos perdidos na brancura manchada do papel,
progredindo com infalível pontaria
na pista das palavras e seus modelos.

Aqui se detecta Manuel Bandeira e além
Carlos Drummond de Andrade também
brasileiro. Esta palavra vida
foi roubada a Manuel da Fonseca
(ou foi o russo Vladimir Maiacovsky
quem a gritou primeiro?). Esta,
cardo, é Torga indubitável, e
se Deus Omnipresente se pressente,
num verso só que seja, é um Deus
em segunda trindade, colhido no Régio
dos anos trinta. Se me permito uma blague,
provável é que a tenha decalcado em O’Neill
(Alexandre), ou até num Brecht
mais longínquo. Aquele repicar de sinos
pelo Natal é de novo Bandeira (Porque não
Augusto Gil, António Nobre, João
de Deus?). Estão-me interditas,
com certos ritmos, certas palavras. Assim,
não devo dizer flor nem fruto,
tão-pouco utilizar este ou aquele nome próprio,
e ainda certas formas da linguagem comum,
desde o adeus português (surrealista)
ao obrigatório bom-dia! (neo-realista).
Escrevendo-o quantos poetas, sem o saber,
mo interditavam apenas a mim; a mim, perplexo
e interrogativo, perguntando-me, desolado:
— E agora, José?, isto é, — E agora, Rui?

Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen
e Dylan Thomas. No grego Kavafi,
no chinês Po-Chu-I, no turco
Pir Sultan Abdal, no alemão
Gunter Eich, no russo André Vozenesensky
e numa boa mancheia de franceses. Que desde
a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.
Que subtraio de Alberto de Lacerda
e pilho em Herberto Hélder e que
— quando lá chego e sempre que posso —
furto ao velho Camões. Que, em suma,
roubando aos ricos para dar a este pobre,
sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas.

Mas bastando-lhe o pouco que sabe de meus delitos,
e sem esse tanto que ignora, o detractor de meus versos.
relata circunstanciadamente e com detalhes perversos,
a feia história de meus feios actos.
A distracção de grupos sonolentos
acorda enfim para o timbre esquisito do meu nome
(Na sombra envenenada se entretece
o primeiro braçado dos louros que hão-de
cingir-me a fronte…). Por isso não quero mal
ao detractor de meus versos. Antes lhe quero
bem. Pela teimosa persistência do seu trabalho
vigilante é afinal um detractor amoroso,
o sistemático detractor de meus versos.

Rui Knopfli

(de Mangas Verdes com Sal, 1969)


Rui Manuel Correia Knopfli (InhambaneMoçambique10 de agosto de 1932 - Lisboa25 de dezembro de 1997), foi um poetadiplomata e crítico literário e de cinema português.




Veja aqui a interessante biografia de
Rui Knopfli  



de aqui

Imagem: pixabay

2 comentários:

  1. Belli questi versi,buona serata.Olga

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  2. Querida amiga Olinda, sempre encontraremos detratores dos escritos mais renomados da literatura... dos nossos autorais... dos amigos escritores...
    particularmente, me chamaram atenção os versos abaixo:

    "De olhos perdidos na brancura manchada do papel,
    progredindo com infalível pontaria
    na pista das palavras e seus modelos."

    Interessante como os escritores afinados com as palavras ainda buscam a pontaria acertada no alvo... um grande incentivo a todos nós que prezamos a escrita e a leitura.
    Na realidade os olhos, aparentemente perdidos, estão mais do que na mira do conveniente para aquele sagrado momento da composição que sempre se alinda afinal.
    O texto todo é de uma inteligência escrita fora do normal. Não o conhecia.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Beijinhos fraternos de paz e bem

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