quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Esta lembrança




Esta doce lembrança

Cruel no seu âmago

Colou-se-me à pele

Imprimiu-se em mim


É força positiva, aliás,

Energia quase negativa

Conforme eu visiono 

O meu mundo interior


Um desejo insatisfeito

Muito para além de mim

Universo assaz perdido

Num dia aziago e distante

Dinola Melo 



VERDES ANOS - Rapsódia
 Marta Pereira da Costa



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Imagem: pixabay

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Até logo

 À Isaura




Há oito meses dissemos:
– Até logo!
Era uma tarde fria de Novembro
uma tarde como qualquer outra
gente regressando a casa do trabalho
lancheiras malas rugas profundas no rosto.

Se houvesse malas de mão
para a saudade a desventura
não havia malas no mundo que chegassem…

Era uma tarde fria de Novembro.
Não sei se alguém sorriu
do beijo que trocámos.
– Até logo – disseste.

Depois passaram oito meses
os meses mais compridos que tenho encontrado.

Que pensamentos levava comigo?
Sei que disseste «até logo»
E era como se levasse as tuas mãos
Abertas sobre o meu peito.

Pensava
que só nas despedidas breves
por horas
se dizia «até logo»
como a alguém que parte
«boa viagem»
ou ao nosso companheiro
«bom trabalho».

Mas já passaram oito meses
duzentos e quarenta dias
cinco mil e setecentas horas.
Porque disseste
«Até logo»?

Se eu não soubesse
aprenderia que na minha pátria
os namorados dizem «até logo»
e estão meses anos
por vezes não voltam mais.

Fecham-nos
atrás de grades de ferro
espancam-nos
matam-nos devagar
e não permitem que apareçam
«logo».

Amiga
o ódio que trago armazenado
destas noite de insónia e abandono
dou-o à luta.
Mas temos que sofrer
sofrer deveras.
Até que um dia
Os homens cantarão livres como os pássaros

os namorados beijarão sem pressa
e as palavras «até logo»
quererão dizer simplesmente
«até logo»

António Borges Coelho

    (1928-2025)


António Borges Coelho, historiador, poeta e teatrólogo português. Catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem diversos títulos publicados sobre história medieval e começos da Idade Moderna.

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Lisboa, doutorado em História Moderna com um estudo sobre a Inquisição de Évora, foi docente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especializado na área da História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa.

Colaborou em várias publicações periódicas com estudos históricos; efetuou traduções de obras filosóficas e históricas; dirigiu a revista História Sociedade. No domínio da investigação histórica, revelou-se com A Revolução de 1383, numa tentativa de caracterização dessa crise sociopolítica a partir de uma perspetiva baseada no materialismo histórico. Ver aqui

Foi meu professor.

Faleceu hoje.


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Poema: daqui

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

"Os Maias", dançado

  Pela primeira vez na forma de bailado, o romance de Eça de Queirós estreia-se no Teatro Camões a 16 de Outubro, estando previstas dez apresentações, até dia 26 do mesmo mês. É uma criação de Fernando Duarte, coreógrafo e director artístico da CNB, um bailado em três actos que conta a trágica história do amor incestuoso de Carlos da Maia e Maria Eduarda. 




Foi o que eu li e ouvi ontem. 

Também vi alguns passos na Tv2 o que aguçou a minha curiosidade. O romance de costumes de Eça de Queirós, em passos de dança, estreia absoluta. O que diria Eça perante tal representação artística, ele que tinha sempre uma palavra a dizer acerca do que se passava na sociedade lisboeta?

Senhor de uma Obra gigantesca, sendo "Os Maias" uma das mais conhecidas, publicada em 1888. Esta trata da história de três gerações da Família Maia, na qual vemos desenrolar a tragédia de Carlos e Maria Eduarda, irmãos, mas também temos contacto com personagens que agilizam a trama como o retórico João da Ega e o Eusebiozinho, representante da educação tradicional e retrógrada portuguesa.

O autor inicia o livro com a descrição da Casa do Ramalhete que nada tem de campestre e fresco, antes pelo contrário de ambiente bastante escuro e pouco apelativo. Apesar do tema delicado, vemos que ao longo da obra não perde a oportunidade de aplicar a sua fina ironia e crítica na leitura das situações que se apresentam nas reuniões burguesas da Lisboa do século XIX.

Vou aproveitar para reler "Os Maias".


Abraços, amigos.

Boa semana.

Olinda


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Imagem: daqui 

"Os Maias" - em PDF

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Ana Paula Tavares - Prémio Camões 2025

 




"A massambala cresce a olhos nus"

Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.

Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranqüilas águas do lago.
Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.

Ficaram pouco tempo
mas todo o pasto se gastou na sede
enquanto a massambala crescia
a olhos nus.

Partiram com olhos rasos de pasto
limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.


 O lago da lua - 1999



 



De alguns dos excelentes poemas de Ana Paula Tavares que já publiquei, optei por republicar "Vieram muitos" por me lembrar a luta do povo Kuvale do sul de Angola, povo esse registado por Ruy Duarte de Carvalho, em "Vou lá visitar pastores". Também Pepetela dedica algumas páginas no seu livro "Yaka", ao drama desse povo. 

Ana Paula Tavares, angolana, escritora, historiadora, cuja biografia consta já no Xaile de Seda, conta com uma obra de respeito e já tive oportunidade de falar sobre ela e, como disse acima, de publicar poemas seus. Portanto, não me surpreendeu que o júri do Prémio Camões lhe tivesse atribuído o mais alto galardão de literatura em língua portuguesa. 

Aproveito para deixar aqui mais um dos seus poemas, que muito aprecio:


MUKAI

(2)


O ventre semeado

desagua cada ano

os frutos tenros

das mãos

(é feitiço)

nasce a manteiga

a casa

o penteado

o gesto

acorda a alma

a voz

olha para dentro

do silêncio milenar.

Ana Paula Tavares

(O lago da lua)




Welwitschia - Deserto do Namibe





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Ana Paula Tavares - aqui, no Xaile de Seda.

Buala: Três olhares sobre a etnia kuvale

AMOR

 




o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto
in "A Casa, A Escuridão"



José Luís Marques Peixoto ( 04/09/1974) é um escritor, dramaturgo e poeta português,
cuja primeira obra foi publicada em 2000. Com apenas 27 anos, José Luís Peixoto foi o mais jovem vencedor de sempre do Prémio Literário José Saramago. Desde esse reconhecimento, a sua obra tem recebido amplo destaque nacional e internacional. Os seus livros estão traduzidos e publicados em 26 idiomas. Foi o primeiro autor de língua portuguesa a ser traduzido e publicado na Arménia (Morreste-me, 2019), na Geórgia (Galveias, 2017) e na Mongólia (A Mãe que Chovia, 2016).aqui




Julio Iglesias
Amor, Amor






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Poema: citador
imagem: pixabay

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Tertúlia de Amor (3)



Convite da amiga Rosélia para esta 

Tertúlia de Amor

a decorrer até Dezembro

(Um post por mês)

BLOG: AMORAZUL


***


Livro da Vida


Entre conversas alegres e risos

Viu-a sentada, concentrada a ler

Um livro que parecia muito 

interessante


Alheia ao que se passava à sua volta

um ambiente de sonho promovido 

pela anfitriã, cheio de luz e de sabores

campestres 


A música soava como um convite ao

enamoramento, a que o perfume das flores

em jarras coloridas emprestava brilhos

 de Sonho


Aproximou-se enlaçou-a pela cintura

E espreitou por cima do seu ombro

Interrompeu-a perguntando-lhe o

que estás a ler?


Com um sorriso doce e encantado

disse: O Livro da Vida, que nos leva 

numa viagem maravilhosa e ensina

a doçura do amor


Uma experiência humana em que os mais 

belos sentimentos se aliam e fazem de nós

Os protagonistas de uma bela história

por demais desejada


SER FELIZ!


Olinda




Almir Sater

Tocando em Frente




Abraços, amigos.

Olinda




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O Livro da Vida, segundo Kahlil Gibran | e-cultura

Imagem: pixabay

sábado, 27 de setembro de 2025

O primeiro de todos os meus sonhos





o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar(pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terra

até o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas;que dançam
e dançando arrebatam(e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)

mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio:em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem(bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágica

para sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou:e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
—onde tu e eu estamos a florescer

E. E. Cummings, 
in "livrodepoemas"
Tradução de Cecília Rego Pinheiro




Edward Estlin Cummings (1894-1962), usualmente abreviado como e. e. cummings, em minúsculas, como o poeta assinava e publicava, foi um poetapintor, ensaísta, autor e dramaturgo americano.
...No momento de sua morte, Cummings era reconhecido como o "segundo poeta mais lido nos Estados Unidos, depois de Robert Frost".






Amor em construção
Marco Rodrigues e Marisa Liz




Meus amigos,
A partir de segunda-feira vou ausentar-me 
por uns dias.
Abraços
Olinda


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Poema: in Citador
imagem: pixabay

terça-feira, 23 de setembro de 2025

O amarelo actual que as folhas vivem




Quando, Lídia, vier o nosso Outono

Com o Inverno que há nele, reservemos

Um pensamento, não para a futura

Primavera, que é de outrem,

Nem para o Estio, de quem somos mortos,

Senão para o que fica do que passa —

O amarelo actual que as folhas vivem

E as torna diferentes.


Ricardo Reis




***


Ricardo Reis (19 de setembro de 1887) é um dos quatro heterônimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, tendo sido imaginado de relance pelo poeta em 1913 quando lhe veio à ideia escrever uns poemas de índole pagã.

aqui



Um Outono metafórico como imaginária é a figura de Lídia.
Mas a realidade é bem diferente. O nosso Outono já deu entrada neste nosso hemisfério, mais precisamente por cá. Tempinho fresco, mas a prometer calor lá mais para a frente, e alguma chuva que não chega para apagar os incêndios que já voltaram.

Mas tenho umas belas palavras, do nosso poeta Luís Rodrigues, que tomo a liberdade de transcrever:



O Outono

é um lugar só nosso

onde guardamos a beleza
 
das estações da vida

L.R.



Abraços. meus amigos.
Olinda




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13-6-1930

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 

 - 120.

1ª publ. in Presença , nº 31/32. Coimbra: Mar./Jun. 1931.

domingo, 14 de setembro de 2025

Vive o instante que passa




Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.

Vergílio Ferreira
, in 'Conta-Corrente IV'



***




Aldeia de Melo - a aldeia eterna, no dizer de Vergílio Ferreira. É lá que está a decorrer o Festival Literário designado "Em nome da Terra", de 11 a 15 do corrente mês de Setembro, celebração das palavras e da memória. 
Inspirado no legado literário e na dimensão interartística da escrita de Vergílio Ferreira, o festival inclui propostas para públicos de todas as idades onde se incluem conversas com escritores, oficinas criativas, visitas às escolas, sessões de mediação de leitura, formação para docentes, apresentação de livros, música ao vivo, cinema documental, exposições e performances literárias.



Boa semana, amigos.
abraços
Olinda


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Texto: incitador
1ª imagem: pixabay
Acima: casa onde Vergílio Ferreira cresceu, na aldeia de Melo.


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Cítara de teus dedos





Que a cítara em teus dedos se desdobre
Nos sentidos em mim despertos...

E dos sons longínquos
Apenas eco e murmúrio e dor da ausência
Seja em minha boca o brado

E a bruma se desvaneça
E tudo seja claro...

Que peregrino por ti
Me reconheço. E outra eternidade
Não quero...

In Coreografia dos sentidos
pg 92





...
uma coreografia de autor em que se reconhece o caminho já andado, mas onde a montanha se faz vale, ou seja, acolhe-se num múltiplo eu em busca do outro.

o que em Manuel Veiga é um destino sem cenários vagos.

tudo o absorve tudo lhe é pródigo e prece.
...

Isabel Mendes Ferreira




Nat King cole
Unforgettable







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Boa semana, amigos.

Abraços.
Olinda


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Alguns posts aqui no Xaile de Seda, sobre Manuel Veiga
Imagem: Pixabay

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Abissínia

Amigos, eu não me esqueci. Disse aquando das respostas ao quiz sobre África que, depois, falaria de um dos países que ali apareceram. E esse país é a Etiópia, que prefiro tratar por Abissínia.

Falar da Abissínia, do Império Etíope, é falar de um império* que nunca foi colonizado. Na altura da partilha de África, na Conferência de Berlim, de 1884-1885, os países que tomaram parte nesse acontecimento em função dos conflitos pela posse desse continente, traçaram praticamente a régua e esquadro os espaços que lhes interessavam, separando culturas e etnias. Começaria então a colonização propriamente dita.

E falo da Abissínia porque ela é considerada o "berço da humanidade". Ali foram encontrados os mais antigos vestígios da nossa evolução. 

Não sei se estarão lembrados de "Lucy" um fóssil de Australopithecus afarensis de 3,2 milhões de anos, descoberto em 1974 pelo professor Donald Johanson, um norte americano antropólogo e curador do museu de Cleveland de História Natural e pelo estudante Tom Gray em Hadar, no deserto de Afar, na Etiópia.

A título de curiosidade, há notícias do passado mês de Agosto de que os fragmentos de Lucy e Selam, esta, uma criança que terá vivido 100 mil anos antes de Lucy, estão expostos, por 60 dias, no Museu Nacional Tcheco de Praga, isto é, pela primeira vez na Europa. aqui


Castelo do rei Fasilides, 1632 e 1667


A Etiópia, Abissínia (assim grafado no exterior), é um pais independente desde a antiguidade, donde se pensa ter saído o homo sapiens. Encravada no Corno África, faz fronteira com o Sudão e com o Sudão do Sul a oeste, com o Djibuti e a Eritreia ao norte, com a Somália ao leste, e o Quênia ao sul. Sua capital é a cidade de Adis Abeba.

Este é apenas um apontamento. Quem quiser saber mais sobre África poderá consultar a obra de Joseph Ki-Zerbo, "História da África Negra" em 2 volumes, em que desmistifica a ideia de que África não tem história.



**A Canção dos Beatles

"Lucy in the sky with Diamonds"



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Alguns posts sobre África, aqui, no Xaile de Seda

*A Libéria também não foi colonizado por europeus. Foi fundada por escravos americanos libertos com a ajuda de uma organização privada chamada American Colonization Society, entre 1821 e 1822, (ver aqui)

**Os fragmentos de Lucy tomaram esse nome proveniente da canção dos Beatles, "Lucy in the sky with Diamonds. Motivo: Durante as escavações os arqueólogos estavam a ouvir essa canção.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Tertúlia de Amor (2)

 


Convite da amiga Rosélia para esta 

Tertúlia de Amor

a decorrer até Dezembro

(Um post por mês)

BLOG: AMORAZUL


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Milonga


De vestido de chita e chinelo no pé

Lá vai ela toda airosa pisando o

macadame com graça e donaire


Os seus longos cabelos revolteiam

ao vento suão que atrevido lhe

levanta a saia fazendo ondas


Dali da esquina ele espreita a graça

dessa menina que avança trilhando

o seu caminho, e parece não o notar


Com passos cautelosos ele surge à

sua frente com o seu lindo sorriso

sedutor que lhe derrete o coração


Dá-lhe o braço, segreda-lhe algo

ela ri atirando a cabeça para trás

e ensaiam um pé de dança mexida


Mudam de ritmo e mesmo de chinelos

agarra o seu par e no meio da rua

os acordes de uma milonga lhes soa


Num encantamento amoroso, terno

o par deixa-se levar voando alto

muito alto, numa magia maravilhosa


O céu é o limite!


Olinda



La Milonga de Buenos Aires:
Dmitry Krupnov & Maria Orlova



Abraços fraternos, amigos.

Olinda


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Imagens: pixabay

domingo, 31 de agosto de 2025

O Tejo






XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

 

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

 

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

 

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.

 

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.


Alberto Caeiro






Lara Brenner
Sobre o poema, sobre Fernando Pessoa,
sobre os heterónimos, sobre o Tejo, 
símbolo de
poder ...




Abraços, amigos.


Olinda





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7-3-1914

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).

  - 46.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
In: Arquivo Pessoa
Ver Fernando Pessoa aqui, no Xaile de Seda