sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Literatura eterna ou temporal

O ser humano busca nas artes a forma de exprimir os seus sentimentos, sonhos, anseios, desejos. Vemos isso na pintura, na escultura, na música, na dança, no teatro e em tantas outras actividades. 

Assim a Literatura, essa manifestação artística maior que, através do verso e da prosa, procura explicar o nosso mundo, o mundo das sensações, das emoções. É o sítio onde marcamos encontro, tomando contacto com a nossa condição humana, um lugar onde autores e leitores comungam do poder das palavras, a matéria prima moldada, cinzelada pelo talento e prenhe de significações. Cada um de nós aproveitará esse manancial, representado pelos textos literários, de conformidade com a sua sensibilidade e as suas necessidades. 

Tem sido colocada a questão sobre a responsabilidade dos obreiros da Literatura de produzir textos que respondam ou não a questões da sua época ou, ainda com um sentido lato, que atravessem o próprio tempo tornando-se quase eternos



Vejamos o que tem a dizer José Régio sobre o assunto, na sua qualidade de historiador da Literatura:

Penso eu que a literatura pode responder a interrogações, pode tentar responder-lhes, pode simplesmente pô-las e pode nem sequer pô-las. Há a contar com a variedade dos temperamentos literários. Coisa difícil, sei-o por experiência própria, embora deva estar na base de qualquer atitude crítica. Aceitemos, porém, que toda a grande literatura põe interrogações, e lhes procura resposta. Pergunto: Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura procura responder? Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época? E não perdurará na medida em que, através, ou não, de respostas provisórias a interrogações provisórias, sugere uma resposta eterna a interrogações eternas, exprime inquietações eternas embora de forma pessoal?

Entendamo-nos: Há quem, no homem, antes considere o homem eterno, e quem antes considere o homem temporal. O leitor compreende que chamo homem eterno ao que, no homem, permanece através da diversidade das épocas, dos meios, das circunstâncias históricas, das modalidades individuais; e que chamo homem temporal ao que nele depende destas coisas. Evidentemente, o homem que através da literatura se nos revela é, ao mesmo tempo, um e outro: o temporal e o eterno. Mas a questão é esta: Será antes pelo que nos revela do homem temporal que uma obra dura por humana - ou antes pelo que nos revela do homem eterno? Duram as tragédias de Shakespeare, ou as comédias de Molière, antes pelo que nos mostram do homem do tempo de Shakespeare e Molière, ou antes pelo que nos mostram do homem de sempre?

Diz Rodrigues Miguéis: «Uma literatura que não responde às interrogações da sua época - pelo menos - está condenada ao esquecimento.» Ora aquele importante "pelo menos" ao mesmo tempo salva e embrulha tudo nesta frase dúbia. Tal como está expresso, o pensamento de Rodrigues Miguéis é o seguinte: uma literatura, para viver, deve responder às interrogações que o homem se põe. Em primeiro lugar (parece) às eternas interrogações do homem de sempre; pois em não respondendo a estas, deverá responder, pelo menos, às da sua época.




Ecce Homo:

José Régio (1901-1969), ou José Maria dos Reis Pereira, o autor do Cântico Negropoema lapidar de que apenas retemos, por vezes, os versos considerados mais emblemáticos:

"Ninguém me diga: vem por aqui"!
...Não sei para onde vou 
 Sei que não vou por aí!",

poema esse incluído em Poemas de Deus e do Diabo. Na sua escrita as Palavras parecem ganhar força anímica, a marca desse grande
    escritorpoetadramaturgoromancistanovelistacontistaensaístacronistacríticoautor de diáriomemorialistaepistológrafo e historiador da literatura. aqui

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Andrea Bocelli e Mateo Bocelli


Texto Citador:
José Régio -  in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, 1927-1940'
Literatura - aqui
Imagem: Pixabay


14 comentários:

  1. Não o diria melhor e estou plenamente de acordo.
    Querida Olinda, beijinho para ti.

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  2. Querida Olinda, estou a ver que já regressaste da tua " pausa " e, como não podia deixar de ser, com um post enteressantissimo; sei pouco deste assunto, mas, creio que em todas as formas de arte está reflectido o que se passa no intimo do artista, um pouco da sua vivência e consequentemente da epoca em que vive e da sociedade em que está inserido. Nós, humanos ,


    somos influenciados pelo meio em que vivemos e dele depende muito a nossa formação, a nossa maneira de ver e de entender as coisas. No caso da literatura , penso que não há maneira de separar o " homem eterno" do homem " temporal ", porque, mesmo tratando numa obra assuntos de uma época, se pensarmos bem, na sua essência o homem é o mesmo, outrora ou na actualidade: o homem foi, é e será um ser sempre inquieto, cheio de dúvidas, interrogações, medos, anseios e revoltas; as tragédias de Shakespeare duram porque respondem as inquietações do homem daquela epoca que são as mesmas do homem de hoje só que " moldadas" por usos e costumes diferentes. Os artistas são diferentes e os olhos que admiram as suas obras também são diferentes; uns verão nelas respostas às suas interrogações, outros ficarão inquietos ao olhå-las e mais dúvidas surgirão e outros ainda nem sequer se darão ao trabalho de tentar entendê-las. Li um livro há umas semanas que retratava uma época muito distante, mas que me trouxe muito consolo ao lê-lo, porque, apesar do tempos de usos e costumes tão diferentes, revia-me em cada página que ia lendo e por isso, acho que é dificil fazer a separação entre o tal " homem eterno e o homem temporal. Considero esse livro um dos mais lindos que li e vi nele uma coisa muito importante: as familias são todas iguais e independem da época; em todas há conflitos, em algumas resolvem-se facilmente, noutras nunca se resolvem, mas em muitas o amor, o diálogo e a compreensão conseguem que a união se mantenha. Olinda, alonguei-me muito e não sei se me fiz entender, mas, o assunto é arte e a arte também
    nem sempre a conseguimos perceber, por isso, de certeza que serei desculpada caso tenha
    deixado aqui uma grande confusão de ideias. Bem, querida Amiga, deixo-te um forte abraço e espero que tenhas descansado nestes dias de " pausa." Boa noite e obrigada pelo assunto tão " educativo"
    Emilia

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  3. A leitura e literatura é importante em nossas vidas e seja da forma que for, estamos sempre perto delas! Linda semana! bjs, tudo de bom,chica

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  4. O homem eterno. O homem temporal. Em qualquer arte se podem confundir. Aquilo que já sentiram outros há muito tempo, hoje em dia tantos de nós sentimos o mesmo. Eterna é sim a arte verdadeira. Quanto à literatura há autores sempre actuais porque souberam entender a natureza humana. E nós como leitores somos Literatura, segundo Eduardo Lourenço. "Nós como Literatura que inventamos a verdade. Verdade segundo Xerazade, aquela que afasta os muros da morte enquanto acrescenta um conto a outro conto sem fim". Um texto muito inspirador, minha querida Amiga Olinda.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  5. Olinda,
    A literatura vem do "Quinhentismo", passando pelo "Barroco", atrelando-se ao "Arcadismo", e por fim ao "Romantismo", que se adéqua aos demais tipos de literatura.
    José Régio acreditava que a literatura poderia responder (ou tentar responder) as suas interrogações. Dessa narrativa postada por ti, discute-se o potencial da literatura na provisão de metáforas para vida real.
    Um abraço!
    Até a próxima!!!

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  6. dois textos muito estimulantes - o texto da minha amiga Olinda que coloca com grande oportunidade a questão da "responsabilidade" dos escritores e da Literatura e o texto de José Régio, que "ilustra", de alguma forma, o tema.

    um certo "misticismo" (ateu) de Régio instiga-o em busca do homem "eterno" e da interrogações "eternas", quer dizer, a Literatura para ser grande deverá elevar-se ás inquietações e problemáticas do homem "de sempre".

    na minha perspectiva, "redime-se" José Régio, quando. na esteira de Rodrigues Miguéis, reconhece, que a literatura, "pelo menos" (?) há-de responder "às inquietações da sua época"...

    Abraço

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  7. Em primeiro lugar, quero referir que considero a literatura uma arte, básica de todas as artes, mas não matriz, porque sabemos que a música, a dança, a escultura, por exemplo, já existiam antes dela.
    Tanto Régio, como RMiguéis pertenceram a uma época em que se usaram aparos e tinteiros para escrever grande parte da sua obra. Nesta época, a dos computadores, a realidade é completamente diferente...
    Já ninguém acredita que um escritor ou filósofo possa dar resposta a questões existenciais...
    Por outro lado, só um número muito limitado de inteletuais pensam na imortalidade da sua obra... A literatura transformou-se num grande negócio e a fasquia desceu bastante... Basta pensarmos nos 'best-sellers' de Portugal e do Brasil...
    Entretanto, a Gradiva soma, indiferente à perenidade ou efemeridade das obras que edita.
    Excedi-me e peço desculpa pelo desabafo.
    José Régio... SEMPRE.

    Ótima semana.
    Beijinhos
    ~~~~

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  8. Olá, Olinda! Na minha opinião, mais do que responder a interrogações, a literatura serve - pode servir para quem queira que sirva - para criar as interrogações, mesmo que nem sempre sejam respondidas, afinal, cabe mais mundo em uma alma que se expande com perguntas, é por isso, inclusive, que costumo dizer, como está escrito lá em meu perfil, que prefiro as perguntas. Espero que tu estejas bem, um abraço!

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  9. Querida Olinda!

    Sou dos que se interrogam e se emocionam. E até dos experimentam alguma felicidade nos registos escritos. É algo que se torna tão natural como respirar. E se deixarmos um pouco de mundo e de contemporaneidade, talvez as palavras se abram ao futuro.

    Por aqui, minha amiga, continuamos na senda da cultura e da reflexão.

    Boa semana e um grande abraço.

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  10. Querida Olinda, disse Dostoiévski que "só a beleza salvará o mundo" e eu digo que ela eterniza o homem, o artista! O que é belo é atemporal. Na literatura também: imortal é aquele que produz uma bela obra que o tempo dirá se é perene ou não, e se tornar-se perene, será imortal, então, imortalizará seu autor. Falar com beleza dos sentimentos humanos e do ser em si, com beleza é algo atemporal. Grande abraço! Laerte.

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  11. Olá, Olinda, gostei muito dessa sua postagem, a literatura e a arte retratam cada momento da história, as situações, as emoções de cada período. Imagine a riqueza que perderíamos se não houvesse a arte encontrada em paredes de cavernas e outros abrigos. Estes desenhos começaram a ser feitos pelos homens há cerca de 40.000 anos atrás. Graças a elas sabemos como viviam os primeiros humanos. A literatura nos dá noções mais exatas, a cobertura de cada época, de cada civilização. As emoções, as inquietações, as dúvidas, as reflexões tudo fazem parte do nosso enriquecimento.Sem essas artes, a humanidade seria absurdamente tosca!
    Beijo, querida amiga, uma boa semana.

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  12. Querida Olinda
    De José Régio tenho alguns livros de prosa e... TODOS os de poesia.
    Considero a sua poesia com muita força - se assim se pode dizer - acutilante, por vezes, mas sempre muito bela. Não me canso de a ler.
    Concordo inteiramente com a sua dissertação sobre a literatura.
    Não vou alongar-me sobre o assunto porque tenho ideias muito pessoais sobre o tema, e demoraria muito tempo (e espaço...) a expô-las.

    RE: A Nanda anda meio amalucada com as férias. Acreditas que nem tem falado comigo? Uma grande ingrata, é o que ela é. Eu sempre a enaltecê-la, a elogiar-lhe as qualidades (que agora já nem sei se as tem...) e ela paga-me com ingratidão. Mas vais ver o que faço quando ela aparecer - não lhe ligo nenhuma, é como se nem a visse. Não achas que faço bem???
    No próximo sábado parto para a Ilha do Príncipe para gozar as últimas férias (deste ano!!!). Regresso no final de Agosto.
    Até lá, minha querida, desejo-te tudo de bom. Que a vida te sorria...

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  13. Olá, Olinda!
    Hoje tive a satisfação de conhecer o seu blog. Sendo apreciador da literatura, sei que sempre temos muitos escritores e escritoras para conhecer, como este de sua postagem, que não conhecia. Agora vou procurar mais textos sobre ele, estimulado pela sua escrita sobre esse autor. Parabéns.
    Uma boa continuação da semana, Olinda. Beijo. Pedro

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  14. Que texto rico, rico em poesia e informação. Quanto ao assunto, acredito que toda literatura fala de algo comum ao ser humano, sentimentos e vida. Tudo esta ligado e nunca deixará de ser compreendido, mesmo que o tempo passe.

    Adorei. bjoo
    https://canalcereja.blogspot.com/

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