MÃOS
Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.
Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da ventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!
Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.
Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!
Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!
Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.
Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!
(1921-1963)
Geógrafo, poeta, docente, nascido em São Tomé, Francisco Tenreiro assume neste poema um lado pan-africanista e nesta visão abrangente de África evoca os grandes impérios e estados africanos, Iorubá, Songhai, Ghana, Benin, Abissínia, assim como a tradição feita de palavras mágicas e interpretadas em quissanges e timbilas, que o mesmo é dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Talvez, por ter vivido desde os dois anos de idade em Portugal Continental, estivesse nele bem vincada a cultura portuguesa, nomeadamente, a do Estado Novo, tendo escrito que não havia escravatura em São Tomé, uma negação polémica depois sublimada pela sua dedicação a África e a São Tomé, sua terra natal. Terra que vê pela primeira vez aos 35 anos altura em que também conhece a mãe. Vida curta. Ele morre aos 42.
Assume o conceito da negritude de que poderemos citar como ideólogos, Aimé Césaire, poeta, e Léopold Sédar Senghor escritor e, posteriormente, presidente do Senegal, conceito esse que ele passa a defender e que introduz na literatura de língua portuguesa.
Gerhard Seibert, num artigo interessantíssimo diz que Francisco Tenreiro é um autor injustamente expatriado, isto é, que perante os dados da sua vida pessoal e profissional ele deveria ser considerado português. Segundo Seibert: "A sua biografia revela claramente que a verdadeira pátria do poeta, geógrafo e político Francisco José Tenreiro é Portugal, enquanto São Tomé e Príncipe é a sua pátria literária".
Seja qual for o ângulo por que se analise a sua vida e obra, Francisco José Tenreiro num primeiro momento preocupado com o seu problema pessoal, sentindo-se dividido por ser mestiço e, quiçá, entre duas culturas, o facto é que soube aderir a uma evolução de pensamento e mudança de mentalidade que já fervilhavam nos finais do século XIX e a seguir à segunda guerra mundial viriam alterar a ordem estabelecida na Conferência de Berlim de 1884/885 - Partilha de África.
Veríamos surgir, nesse contexto, a par de Aimé Césaire e Léopold Senghor nomes como Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba ... Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Noémia de Sousa e tantos outros.
-África Tabanka -
Eneida Marta, cantora guineense, de voz maravilhosa,
que já trouxe ao Xaile, noutras ocasiões.
Bom fim de semana, meus amigos.
Abraços
Olinda
====
Queira ver:
*Francisco José Tenreiro - Poeta, académico e político arbitrariamente expatriado,
*Francisco José Tenreiro - Poeta, académico e político arbitrariamente expatriado,
Francisco José Tenreiro. Parece impossível eu nunca ter ouvido falar Magnífico e intenso poema que li e reli com a paixão de quem ama as palavras. "Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra". Mãos cheias, sim, de amor e sabedoria, de mágoas de beleza... Excelente!
ResponderEliminarUm bom fim de semana, minha Amiga Olinda.
Um beijo.
Publicação lindíssima que me fascinou ler.
ResponderEliminar.
Cumprimentos poéticos..
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Gostei muitissimo do poema e de descobrir Francisco José Tenreiro. Agradeço-lhe esta oportunidade e também o imenso gosto de ouvir a linda voz de Eneida Marta.
ResponderEliminarMinha querida amiga, beijinho com voto de bom final de semana :)
Uma publicação magistral! Obrigada pela partilha!
ResponderEliminar-
Sonhos vagos mergulhados na ilusão
Beijos e um excelente fim de semana.
Poema que é um hino fabuloso a Mãe/Africa e à Negritude. Não conhecia, nem o Poeta, nem o Poema - ambos a merecerem os mais genuínos elogios
ResponderEliminarRepare-se na evolução semântica do poema - no mesmo verso, a alteração apenas de um adjectivo e todo o poema ganha novas ressonâncias
"Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo! ............................................
“Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!" T
Talentoso POETA, enorme Poema
Abraço. Amiga Olinda
Um hino a África e à capacidade criativa das mãos negras mas feito em língua portuguesa!
ResponderEliminarAgradeço a partilha porque não o conhecia.
Abraço
Boa noite de paz, querida amiga Olinda!
ResponderEliminar"...mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças..."
Tocou-me especialmente o parágrafo que recortei acima.
Você já sabe do meu fascínio pela África que por duas vezes quase fui em missão em Guiné.
O ritmo me encanta. Gosto dos atabaques e similares, amiga.
Tão boa sua particularidade em nos partilhar sempre algo de lá e seus arredores.
Muito obrigada, querida.
Meu padrinho sempre me ensinou a pensar no povo que sofre do lado de lá do meu oceano.
Tanta dor, tanto lamento, tanta fome e tanto tudo...
Tenha um final de semana abençoado!
Beijinhos carinhosos e fraternos
Uma bela demonstração da negritude.
ResponderEliminarPoema profundo e lindo.
O vídeo é muito bonito.
África berço da humanidade mais do que um titulo.
Grato Olinda por tão bela postagem sobre a força da África e seu povo.
Carinhoso abraço de paz e feliz fim de semana.
Belas poesias. Parabéns por compartilhar. Boa noite querida. Bom final de semama
ResponderEliminarDesconhecia o Poeta e a sua Obra.
ResponderEliminarLinguagem e pensamento genuínos. Poesia marcadamente Africana e bem "[...] Mãos cheias[...]" de tudo.
Grato, Olinda, pela oportunidade da descoberta.
Beijo
SOL da Esteva
Um lindo poema, querida Olinda.
ResponderEliminarObrigada pela partilha.
Agradeço a sua gentil visitinha.
Desejo um abençoado fim de semana.
Beijinhos
Verena.
Olá, Olinda, foi muito bom ter conhecido aqui nessa sua bela postagem, o poeta natural de São Tomé, Francisco José Tenreiro, bem como o seu poema denso, um canto sobre o sofrimento da África, um alerta e uma súplica.
ResponderEliminarObrigado pela partilha, amiga Olinda.
Um bom domingo, com muito saúde e paz.
Um abraço.
Obrigado por esta brilhante partilha, desconhecia o poeta.
ResponderEliminarBeijinhos
Boa tarde Olinda,
ResponderEliminarUm momento muito belo com a partilha deste sublime poema que canta a Mãe Africa, de quem Francisco José Tenreiro, de forma tão especial,soube captar e transmitir toda a essência que brota do coração de quem ama aquele Continente e sofre com todas as suas vicissitudes.
Muito belas a música e voz.
Um beijinho e uma noa semana.
Ailime
Retifico: boa semana. Bjs
EliminarGostei de ler o excelente e tocante poema e de conhecer a biografia do poeta.
ResponderEliminarLamento a sua partida precoce, não era fácil viver em Angola no tempo da oligarquia e guerra civil...
A música, os sons da mata e a canção emocionaram-me.
Boa semana, Olinda. Beijinhos
~~~~~~
Nunca tinha ouvido falar deste poeta, gostei muito.
ResponderEliminarUm momento muito bonito com uma bela música e uma voz quente e doce.
Abraço e brisas doces **
Boa noite querida Olinda!
ResponderEliminarQue belo poema, não conhecia o autor.
Obrigada pela partilha!
Beijinhos e boa noite.