terça-feira, 11 de agosto de 2020

Da tomada da Ribeira Grande por Cassard

Aproximam-se os franceses! Devagar, em boa ordem, como uma mole imensa e compacta aproximam-se inexoravelmente da fortaleza . De dentro, o governador, o ouvidor, os demais oficiais, observam aquela marcha que mais parece uma manada cega e incapaz de ser detida. Mas mesmo assim, ao tê-los a uma distância que julga boa para o tiro, o governador manda abrir fogo nutrido sobre o inimigo.

Para seu espanto, quase imediatamente uma considerável parte da força de Cassard desorienta-se e bate em retirada. Mas o que é mais incompreensível é que a outra parte  mantém-se  ali firmemente a flagelar os sitiados, como se a parte debandada do exército nada tivesse a ver com a que ainda luta com ferocidade. Só depois se fica a saber que tudo aquilo tinha sido devidamente ensaiado para ser uma simples manobra de diversão: porque a tropa que fingiu retirar-se em debandada, na realidade contorna a fortaleza, desce à Ribeira Grande exactamente no sítio onde nasce a Maria Parda, e sem qualquer oposição entra e saqueia a cidade, e rouba tudo o que apanha a jeito, incluindo os paramentos da capela do Espírito Santo...

 A perda foi tão grave que o Bispo teve que ir negociar com Cassard a devolução de alguns objectos sagrados e paramentos, porque com esse saque tinha ficado impossibilitado de rezar a santa missa. ...

...a vergonha vai um pouco mais longe. A fortaleza está provida com pouco mais  de cinquenta homens, e diante do poder de fogo de que o inimigo está a mostrar-se capaz, começa-se a admitir a conveniência de uma capitulação. ...são enviados emissários de bandeira branca.

Cassard não entende uma única palavra de português... Porém, aceita tudo sem hesitar e assina de cruz o papel que lhe apresentam para esse efeito. As tropas sitiadas abandonam a fortaleza em boa ordem e dirigem-se para o interior da ilha.

E Cassard toma posse física da mesma... De seguida as suas tropas restantes descem também para a cidade e acabam de saquear o que os seus camaradas tinham deixado para trás: as casas do bispo, do ouvidor-geral, do almoxarife, do feitor, de D. Isabel de Barros, avó do nosso coronel, e também do seu filho tenente Pedro Cardoso a quem, aliás, até se permitiram fazer judiarias como tomar-lhe o bastão, puxar-lhe a gravata, meter-lhe as mãos nos bolsos, etc. E para tudo concluir em grandeza, terminam arrebanhando cento e dez peças de escravos, belos rapazes e belas raparigas, cativos e forros misturados.

E vão-se embora finalmente, não sem antes terem minado com explosivos grande parte da muralha da fortaleza, abrindo nela grandes e avultados rombos.

E assim termina o ataque do pirata francês à Ribeira Grande...

...a consolação que historicamente restou aos enganados ilhéus foi terem ficado a saber que a seguir a esse saque Cassard foi para França, onde acabou preso.

In: "A morte do Ouvidor", de Germano Almeida, pgs 121 a 124


A bem dizer, os ilhéus nunca se recuperaram dessa afronta. Tantos anos volvidos, ainda se conta com emoção o ataque de Jacques Cassard à ilha de Santiago, a 5 de Maio de 1712, ao comando de uma frota de 12 navios.

Os corsários ocuparam uma boa parte da ilha, tendo o bispo da Diocese de Santiago de Cabo Verde à época, D. Francisco de Santo Agostinho (1708-1719), retirado para o interior, onde reorganizou as forças de defesa, liderando a resistência e incentivando o contra-ataque. Na retirada, os corsários levaram tudo o que conseguiram transportar...

Deste livro, fiz há algum tempo um post no qual apresento o co-narrador Luís Henriques que mantém com o narrador conversas deliciosas. Cada um tem a seu cargo a narração de acontecimentos de determinados anos, dentro do espaço temporal em que que decorre este romance histórico.

Voltarei com mais uma ou outra passagem.

Tenham uma boa semana, meus amigos.

Saúde!

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Imagens net : Forte de São Filipe, Santiago , Cabo Verde

Ribeira Grande de Santiago - hoje Cidade Velha

Maria Parda - Ribeira Grande de Maria Parda

13 comentários:

  1. Belo texto que adorei ler. Puro fascinio de leitura.
    .
    Abraço sentido.

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  2. Boa noite de serenidade, querida amiga Olinda!
    No Castelo de São Jorge, pude observar uns canhões localizados para uma boa pontaria na expulsão dos invasores. Em Faro, a muralha ainda bem conservada e exposta... Portugal valoriza a cultura, a memória.
    Gostei muito de História.
    Passo aqui e você, com toda categoria, mostra muita coisa bem pesquisada que vale a pena ler.
    Tenha dias abençoados!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  3. Adoro História e gostei muito de Cabo Verde, tendo estado nesta fortaleza e na Cidade Velha. Pelo que o post resultou muito interessante para mim.

    Querida amiga, bom resto de semana e um abraço grande :)

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  4. Agradeço a partilha.
    Desconhecia este acto de pirataria!

    Abraço

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  5. Sempre aprendo muito aqui no xaile e hoje não foi diferente. Nada sabia deste assunto e agora saio mais enriquecida, Sabes que estou de férias com a minha familia, muito mais isolada do que em férias anteriores, mas está a ser muito bom. O que importa é ver os primos juntos, com a oportunidade da mais pequenina conhecer e conviver com os mais velhos, o Lucas de 13 e a Eduarda de 11; anda, simplesmente, fascinada, principalmente com a Duda. Amiga, espero que continuem bem de SAÚDE e deixo-te um abraço carregadinho de amizade
    Emilia

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  6. excelente narrativa, que deixa antever em Germano Almeida
    um fabuloso contador de "estórias"

    gosto muito, Olinda
    e com vontade de mais...

    abraço

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  7. O ser humano e as suas atrocidades.
    Este é um excelente documento histórico de uma enorme patifaria. E tudo era permitido.

    Beijos, querida amiga Olinda.

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  8. Aprendo sempre que aqui venho. É dos espaços mais completos que por aqui conheço.
    Obrigada Olinda por esta partilha de conhecimento.

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  9. Olá Olinda,
    Foi muito gratificante para mim saber coisas que desconhecia completamente.
    Este é um documento histórico que deve ser preservado.
    Um abraço.
    A.S.

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  10. *
    Ainda em modo de férias, passo numa breve visita a fim de desejar um excelente fim de semana.
    Dias diferentes que nos encher a alma. 2º Dia.

    Beijos

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  11. Um magnífico Relato Histórico que bem sabe conhecer. A cobiça dos homens sempre foi (é) motivo para saciar crenças falsas e ambições desmedidas. Ainda hoje...

    Beijo
    SOL

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  12. Olá Olinda querida


    Adorei o relato e aprendi um pouquinho mais por aqui.

    Beijos
    Ani

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  13. Germano Almeida é um grande narrador, como se pode verificar no modo como nos relata este episódio que eu desconhecia. Gostei de ler, minha Amiga Olinda.
    Muita saúde.
    Um beijo.

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