quarta-feira, 16 de julho de 2025

Não Fora o Mar!




Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.

Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.

Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.

Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.

Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.

Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.

Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.

Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,

Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.

in "Trinta e Nove Poemas"


Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro (1900-1994) foi uma escritora, poetisa, tradutora portuguesa.

Foi Fundadora e directora da Associação Nacional dos Parques Infantis e da revista «Bem Viver» e de diversas acções em prol do turismo. Escreveu músicas para fado, marchas e canções infantis e, também, argumentos para cinema e bailado. Ver mais aqui



DUNAS
GNR


Uns diazitos ao pé do mar. Sol, mar e dunas. Enterrar os pés na areia e sentir a água rumorejar como se contasse segredos antigos. E mais ali ao lado a arte xávega, ao fim da tarde. Nas horas mais quentes, um livro.

Até breve.

Abraços, meus amigos.

Olinda 


====

Poema: in citador


sexta-feira, 11 de julho de 2025

"As Melusinas à Margem do Rio"




Tenho estado a ler alguns livros de Philippa Gregory sobre a "Guerra das Rosas", de 1455 a 1487, entre a Casa Lencastre e a Casa de York, uma guerra feroz entre primos. Tratando-se de uma aristocracia terra-tenente, o objectivo maior era deixar herdeiros, prometendo em casamento meninos e meninas no sentido de juntar casas e fortunas. Assim, o importante era ascender ao trono e permanecer ali e se necessário mandar decapitar familiares e amigos que tentassem impedir esse estado de coisas, no seu próprio interesse, como é evidente.

O penúltimo romance que li foi "A Rainha Branca", referente à flor branca dos York. A esposa de Eduardo IV de nome Isabel Woodville, era tida como bruxa dizendo-se que o seu poder lhe vinha de Melusina, personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas. Ela é geralmente representada como uma mulher que é uma serpente ou peixe (ao estilo das sereias), da cintura para baixo. 

Consta que, a beira do rio Tamisa, Isabel Woodville e a mãe, Jacquetta de Luxemburgo, lançariam pragas para que Melusina produzisse tempestades no sentido de que a parte contrária não pudesse avançar com as suas tropas. 

Posto isto, chamou-me a atenção a notícia de que um documentário da autoria de Melanie Pereira ganhara o prémio de grande vencedor do 21º festival de cinema DocLisboa, em 2023, com este título: "As Melusinas à Margem do rio". 

Esse documentário nada tem a ver com a Guerra das Rosas, mas sim com Melusina e o rio e sobre o fenómeno da imigração. Fala da história de cinco mulheres, reflectindo sobre identidades fragmentadas e sentimentos de não pertença: Ana-Filipa, Melina, shanila, Amela, e a própria realizadora, Melanie, nascidas em Luxemburgo de pais imigrados. A finalidade do filme é, precisamente, tentar uma reconciliação com o país que as viu nascer. Contudo, no trailer diz-se que o que é fragmentado não tem reconstituição possível.

Eis uma passagem do referido documentário:

Há também algo de profundamente terapêutico na forma como Melanie Pereira, se aproxima das suas amigas: Ana Filipa, Melina, Shanila e Amelia. As conversas que partilham não têm pressa. São feitas de pausas, de memórias familiares, de perguntas difíceis como “De onde és, afinal?”. O que para muitos é uma pergunta banal, mas para elas é um poço sem fundo. “As Melusinas à Margem do Rio” não procura respostas fáceis. Antes, tenta habitar o desconforto, o desenraizamento, a sensação de nunca se ser “de lá”, mesmo quando se nasceu lá. A segurança económica e o conforto social do Luxemburgo não apagam o sentimento de exclusão cultural. E é nesse desfasamento que nasce a dor, mas também a arte e a simplicidade da realizadora.

Transpus a similaridade deste caso para outros que conheço, de filhos de imigrantes que nascem em países que não os dos pais e que lutam toda a vida com essa diferença.

Um exemplo flagrante, mal estudado, é o caso dos filhos dos europeus que vieram de África, os chamados retornados, que nunca se integraram verdadeiramente e os filhos dos africanos que carregam nas costas a marca desse estrangeirismo
 
O papel do documentário referido acima é deveras importante porque foca esse sentimento de não pertença. Filhos sem terra, quase expatriados, que não pertencem a lado nenhum, que tentam construir uma vida baseada no trabalho, na integração social e política e que nem sempre se sentem realizados.  



Abraços, amigos.
Olinda



===
Imagem: pixabay

Embora o documentário se refira a Luxemburgo, em homenagem aos livros de Philippa Gregory optei pela imagem acima. Isabel Woodville esteve muito tempo refugiada com os seus filhos, na Abadia de Westminster.

Ver aqui "As Melusinas à Margem do Rio - Análise / Uma história de sereias reais".



sábado, 5 de julho de 2025

Terra sonâmbula

 Aos poucos, eu sentia a nossa família quebrar-se como um pote lanado no chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio já não restava nada. Nós estávamos mais pobres que nunca. Junhito tinha os joelhos escapando das pernas, cansado só de respirar. Já nem podíamos machambar. Minha mãe saía com a enxada, manhã cedinho, mas não se encaminhava para parte nenhuma. Não passava das micaias que vedavam o quintal. Ficava a olhar o antigamente. Seu corpo emagrecia, sua sombra crescia. Em pouco tempo, aquela sombra se ia tornar do tamanho de toda a terra.

Mesmo para nós, que tínhamos bens, a vida poentava, miserenta. Todos nos afundávamos, menos meu pai. Ele saudava a nossa condição, dizendo:a pobreza é a nossa maior defesa. A miséria faz conta era o novo patrão para quem trabalhávamos. Em paga recebíamos protecção contra más intenções dos bandidos. O velho exclamava, em satisfação:

_É bom assim! Quem não tem nada não chama inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter portas.

Excerto: Terra Sonânbula, de Mia Couto - pg.15



Mia Couto, pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, África, no dia 5 de julho de 1955. É filho de Fernando Couto, emigrante português, jornalista e poeta que pertencia aos círculos intelectuais de sua cidade. Ver mais aqui


===

Veja: Mia Couto aqui, no Xaile de Seda

Terra Sonâmbula é o primeiro romance publicado por Mia Couto (1992)
Nota do editor: Machambar - fazer machamba, cultivar um terreno agrícola

quarta-feira, 2 de julho de 2025

MÊS DOS ENAMORADOS (5)

 



Comemoração do Dia dos Enamorados, no Brasil, 
12 de Junho
Convite da Amiga Rosélia
Blog: AmorAzul


***




CONTO DE FADAS

Pensei que o meu coração deixara de bater.
Não foi propriamente de desilusão mas alguma coisa 
se fundiu e deixou de funcionar.

Assim fiquei anos à espera, talvez, de um novo 
alento.

Então apareceste tu, e eu, receosa, não queria voltar
a acreditar. Pintaste-me o mundo das cores do arco-íris,
mostraste-me que o céu era logo ali: "mais um pouco
de azul", dizias.

muito trabalho tiveste nessa demanda, eu que não,
tu que sim.

Aos poucos voltei a aprender a amar.

Reconheci que era um novo tempo, tempo de bonança,
Tempo de Enamoramento. 

Confiar em ti, na tua lealdade,
foi a descoberta de uma nova vida
um verdadeiro 

Conto de Fadas


Olinda



MARISA MONTE
AINDA BEM


Tema desta Semana:
Tempo de Enamoramento


***


Muito obrigada, querida amiga Rosélia, por este 
Mês dedicado ao Amor.

Beijinhos
Olinda




===
Imagem: pixabay

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Em que língua escrever?






'Em que língua escrever
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
E ao longo dos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos




Apesar de ter nascido solta e desenvolta, livre, ainda há quem pense ser dela o dono policiando no escuro a língua, não vá um mal-intencionado beliscar um acento ou acrescentar uma abertura em lugar incerto ou, ainda, quem sabe?, virgular o que deve ser pontofinalizado. 
Mas a língua não se importa que a façam voar em vozes e falas, que a enrolem em pergaminhos, folhas simples ou papel reciclado; o certo é que em silêncio ela grita e mesmo quando, inseguros, nela deitamos a mão... questionando... a língua é sempre testemunha.




Canta Tchuba
Eneida Marta






===
Odete Semedo -aqui no Xaile de Seda
 

sábado, 28 de junho de 2025

São Pedro Apóstolo

 

Desafio de 

Juvenal Nunes

Blogue - Palavras aladas





São Pedro, pescador  de  almas
de chaves bem presas à ilharga
chama todos e livra das chamas
trabalho bem feito com ternura

Abre as portas, corre pressuroso
os anjos ajudam na grande tarefa 
de juntar bom rebanho venturoso
ofício tem mais ajudas sem blefa

Pois seremos todos eleitos, penso
temos o Francisco a cuidar de nós
o Leão cá em baixo a rezar o terço
bons protectores, estes apóstolos! 

Olinda





Conjunto Típico Os Lusitanos
Ó São Pedro popular



O dia 29 de Junho é celebrado como o Dia de São Pedro, na Póvoa de Varzim e Sintra. Esta data foi escolhida em referência à tradição católica de celebrar o martírio de São Pedro e São Paulo, ambos considerados os principais santos da Igreja Católica. Neste mesmo dia é celebrado o dia do Papa, visto São Pedro ter sido o primeiro Papa da Igreja Católica.



***



Olá, amigo Juvenal
Em vez de uma quadra fiz três, mas nem
por isso melhoraram.
Não sei se elas, as quadras, obedecem
a alguma regra, procurei rimar, ficaram
um pouco sem graça, mas já sabe não
sou muito de versos. :)

Obrigada pela sua gentileza.

Abraços a todos.





Muito obrigada, amigo Juvenal.


====

quarta-feira, 25 de junho de 2025

MÊS DOS ENAMORADOS (4)



Comemoração do Dia dos Enamorados, no Brasil, 
12 de Junho
Convite da Amiga Rosélia
Blog: AmorAzul


***





Jamais esqueci o seu nome.
 
Eu, menina, no Liceu, passava toda senhora de mim, 
e olhava sempre em frente. 

Parecia que o mundo era meu e tudo o que gravitava 
à minha volta não tinha importância alguma. 

Ele andava alguns passos atrás, nos intervalos, 
e fazia tudo para se fazer notado. 

Um dia fez chegar até mim um papel todo dobradinho. 

O meu primeiro impulso foi deitá-lo fora. Contudo, 
a minha curiosidade foi mais forte. 

A principio não percebi bem do que se tratava, mas 
por fim consegui ver além do óbvio. 

Era o meu nome ao contrário, em acróstico, 
num poema singelo e belo. 

Impressionou-me. 

Emocionei-me. 

Tentei agradecer a sua delicadeza e quase devoção. 

Debalde. 

Ele tinha seguido viagem com outros da sua idade, 
para continuar os estudos. 

Percebi que o seu gesto tinha sido uma despedida. 
Conservei a sua dádiva. 

Por vezes, uso o nome que ele inverteu e escreveu
no papelinho. 

E jamais esqueci o dele.
 
De coração de pedra, aparentemente, passei a 
assumir o meu verdadeiro eu.

Aprendi a lição...


Olinda


***



Tema desta semana:
Coração de Pedra



===
Imagem: pixabay

domingo, 22 de junho de 2025

Contrição





           (a pretexto de uma mulher de Portinari
           que lembra Picasso (ou Antonello?
)

Meus versos já têm o seu detractor sistemático:
uma misoginia desocupada entretém os ócios
compridos, meticulosamente debruçada sobre
a letra indecisa de meus versos.
Em vigília atenta cruza o périplo das noites
de olhos perdidos na brancura manchada do papel,
progredindo com infalível pontaria
na pista das palavras e seus modelos.

Aqui se detecta Manuel Bandeira e além
Carlos Drummond de Andrade também
brasileiro. Esta palavra vida
foi roubada a Manuel da Fonseca
(ou foi o russo Vladimir Maiacovsky
quem a gritou primeiro?). Esta,
cardo, é Torga indubitável, e
se Deus Omnipresente se pressente,
num verso só que seja, é um Deus
em segunda trindade, colhido no Régio
dos anos trinta. Se me permito uma blague,
provável é que a tenha decalcado em O’Neill
(Alexandre), ou até num Brecht
mais longínquo. Aquele repicar de sinos
pelo Natal é de novo Bandeira (Porque não
Augusto Gil, António Nobre, João
de Deus?). Estão-me interditas,
com certos ritmos, certas palavras. Assim,
não devo dizer flor nem fruto,
tão-pouco utilizar este ou aquele nome próprio,
e ainda certas formas da linguagem comum,
desde o adeus português (surrealista)
ao obrigatório bom-dia! (neo-realista).
Escrevendo-o quantos poetas, sem o saber,
mo interditavam apenas a mim; a mim, perplexo
e interrogativo, perguntando-me, desolado:
— E agora, José?, isto é, — E agora, Rui?

Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen
e Dylan Thomas. No grego Kavafi,
no chinês Po-Chu-I, no turco
Pir Sultan Abdal, no alemão
Gunter Eich, no russo André Vozenesensky
e numa boa mancheia de franceses. Que desde
a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.
Que subtraio de Alberto de Lacerda
e pilho em Herberto Hélder e que
— quando lá chego e sempre que posso —
furto ao velho Camões. Que, em suma,
roubando aos ricos para dar a este pobre,
sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas.

Mas bastando-lhe o pouco que sabe de meus delitos,
e sem esse tanto que ignora, o detractor de meus versos.
relata circunstanciadamente e com detalhes perversos,
a feia história de meus feios actos.
A distracção de grupos sonolentos
acorda enfim para o timbre esquisito do meu nome
(Na sombra envenenada se entretece
o primeiro braçado dos louros que hão-de
cingir-me a fronte…). Por isso não quero mal
ao detractor de meus versos. Antes lhe quero
bem. Pela teimosa persistência do seu trabalho
vigilante é afinal um detractor amoroso,
o sistemático detractor de meus versos.

Rui Knopfli

(de Mangas Verdes com Sal, 1969)


Rui Manuel Correia Knopfli (InhambaneMoçambique10 de agosto de 1932 - Lisboa25 de dezembro de 1997), foi um poetadiplomata e crítico literário e de cinema português.




Veja aqui a interessante biografia de
Rui Knopfli  



====

Poema -  aqui
Considerações sobre a escrita de Rui Knopli - aqui
Imagem: pixabay

terça-feira, 17 de junho de 2025

MÊS DOS ENAMORADOS (3)

 



Comemoração do Dia dos Enamorados, no Brasil, 
12 de Junho
Convite da Amiga Rosélia
Blog: AmorAzul

***

Amor generoso

Como um ramo de rosmaninho tão cheiroso nestes tempos de raiva, trouxeste-me alvíssaras da minha terra amada. De lá também recebi pelas tuas mãos uma cartinha perfumada de quem sinto saudades.
 
Saudades que enchem o peito de pena pelo sofrimento dos que lá vivem e que são perseguidos pelas vicissitudes e pelas injustiças cada dia mais atrozes.
 
Tu vieste, enfrentando perigos que eu sei enormes, e a que não deste importância porque o que desejavas era chegar até mim e consolar-me.
 
Senti que me tinhas trazido o céu, um céu estrelado com cânticos de anjos, um dia cheio de sol com flores de várias cores, um mar azul com veleiros no horizonte.
 
Por momentos, esqueci o mundo desfeito que tenho à minha volta e apreciei a generosidade do amor que me dedicas, tão grande como a imensidão do oceano.

Por tudo isso, sinto que por mais anos que viva serás sempre aquele por quem o meu coração baterá e que terei em ti o esteio por que sempre ansiarei.

Olinda

 


***



LURA
Só um cartinha



Tema desta semana:
Amor generoso


====

Imagem flores: pixabay

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Aminimigos?





Ouvi há dias, na TV, não sei em que canal e em que contexto, este termo: aminimigo. Talvez em algum comentário, mas no momento não pude prestar atenção. Contudo, percebi que se tratava de amigo e inimigo aglutinados e lembrei-me de George Orwell no seu 1984, em que aborda a destruição das palavras na óptica de Winston (personagem renitente, mas que acaba por soçobrar) e de outro interveniente, Syme, que trabalha no ministério dedicado a essa função e que parecia ser a política vigente. 

Segundo a ideologia do Grande Irmão ou Big Brother a ideia era simplificar, criando uma novilíngua, com palavras que seriam perfeitamente compreensíveis sem se ter de acrescentar mais nada. Enquanto que uma palavra pode ter diversos significados na velhílíngua, nessa nova visão, crimepensar, duplopensar, imbom, e muitas outras seriam suficientes sem necessidade de haver sinónimos e antónimos. Assim sendo, um Dicionário estava a ser elaborado e até 2050 não haveria qualquer palavra obsoleta.

Sabemos que o termo aminimigo não foi criado agora. Aparece na imprensa em 1953 e parece querer descrever relações pessoais, geopolíticas e comerciais tanto entre indivíduos quanto entre grupos ou instituições. Este termo também descreve uma amizade competitiva.

Portanto, preparemo-nos. Temos abreviaturas, mas isso já vem desde a Idade Média. Engolem-se palavras, sendo eliminadas tanto da escrita como oralmente... Lêem-se textos com siglas e acrónimos de instituições que muitas vezes não conseguimos identificar. Temos a IA que pensa por nós, produz textos, activa conexões, cria imagens de acordo com as nossas instruções. Temos vozes que vêm do além e que contam as suas vidas...  robots que poderão fazer os trabalhos mais pesados ou porque a tecnologia tem de avançar e sempre é mais cómodo...

Enfim, os pobres continuarão pobres, a guerra e a fome continuarão a fazer estragos. A falta de compaixão e as intrigas permanecerão.

Eu sei. 
Pareço o Velho do Restelo.


===
Aminimigo

Imagem: pixabay