E então subimos aquele grande rio
e as portas do Ródão, chamadas. Era em abril,
dois dias depois da neve
e da cidade dos nevões, na serra.
E olhámos para os penhascos da beira-rio,
as oliveiras, o xisto, a cevada
as ervas de termo e as colinas.
E, junto da via férrea, os homens do país
miravam-nos como se fôssemos nós
e não eles os mortos desta terra,
homens do medo e do tempo da discórdia
que trazem para o cimo das estradas
a malícia que vai apodrecendo
seus pés neste mundo e em terras de outrem.
Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, ó homens,
perdidos que estais, hoje como ontem,
entre a casa e o limiar?
E evocámos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.
E, na verdade, porque regressaremos,
após tantos anos, a este tema?
Será que a morte nos ensinou
a olhar para o homem com pavoroso êxtase?
JOÃO VÁRIO
Excerto de :
"Exemplo Relativo", 1968
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Poeta denso e intenso, de difícil interpretação. Muito se tem falado dele mas não o suficiente porquanto é tido como pouco lido. Fala muito da morte, diz-se, e há quem diga que com razão. Quando pela primeira vez publiquei um excerto de um dos seus "exemplos", limitei-me a interrogá-lo, propondo percorrer o caminho por ele percorrido para o compreender. Mas para isso seria necessário ter o seu engenho e arte...
Ele é João Manuel Varela, de seu nome, mas também João Vário, Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial. Foi um escritor, neurocientista, cientista e
professor cabo-verdiano.
Estudou medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorou-se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde foi investigador e professor de neuropatologia e neurobiologia. Ao jubilar-se, regressou à sua Mindelo natal.
Estreou-se com o livro “Horas sem carne” (1958), depois renegado. Participou em “Êxodo-fascículo de poesia” (Coimbra, 1961) e publicou “Exemplo geral” (1966) e “Exemplo relativo” (1968). Seguir-se-iam outros “exemplos” e a reunião na obra monumental “Exemplos- Livros 1-9” (2000).
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TITINA