Li Vinte e Zinco, de Mia Couto, há mais ou menos três anos e agora volto a pegar nele. Ouvi (ou li?) há tempos alguém dizer que com tantos livros que existem reler é uma perda de tempo. Devo dizer que há certos livros que tenho prazer em reler, mesmo em detrimento de outros ainda não lidos e que talvez nunca chegarei a ler.
Este livro surge na sequência de uma iniciativa da Editorial Caminho, no sentido de assinalar o 25º Aniversário da Revolução de Abril de 1974, da qual resultou a 'Colecção Caminho de Abril', com obras de onze autores. Como não podia deixar de ser, Mia Couto transferiu-se com o tema para o seu espaço de eleição, África, Moçambique, construindo uma história, em forma de diário, que decorre de 19 a 30 Abril.
A seguir, dou-vos conta de algumas passagens.
O dia 30 de Abril tem no seu início a fala que serve de título a este post.
E este dia (o último) tem o seguinte desenvolvimento:
Manhã cedo. O cego Andaré segue pelo carreirinho entre os coqueiros, em direcção à cadeia da PIDE. Leva na mão a chave da prisão. A alegria lhe abalroa o peito. Seus irmãos se libertariam de vez daquela grade. Seria aquilo coisa de acreditar?
Ele se vai guiando pelas sombras, ondulações de cinzento em fundo de cinza. O dia está claro, a luz tão límpida que seus olhos parecem enxergar mais longe. Passa pela margem dos pântanos e pressente as garças como lenços brancos, em drapejos de adeus. Pára, sacudido por miragem. Lhe parece, entre os caniçais, a figura de Irene. Vem acompanhada de Jessumina. As duas estão caminhando na lagoa, a água roça-lhes os joelhos. O cego grita:
-Irene! Menina!
As mulheres erguem o rosto, surpresas. Pareciam não esperar ninguém, manhã tão prematura. Irene ainda acena. O cego corresponde. E um aperto lhe retrai o gesto. Aquele aceno era o da despedida? Andaré esgueira o olhar para aperfeiçoar o horizonte. As mulheres caminham para o centro do lago. Quando a água lhes dá pelo peito, Jessumina pára e passa as duas mãos pela cabeça da branca. Depois, a adivinha lhe vira costas. Irene segue avançando, em demorado naufrágio, até submergir por completo na lagoa. O cego reza para que tudo aquilo não seja mais que desvisão. Dessas imprecisões que nascem de seus olhos adoecidos. Passa as mãos pelas pálpebras como se buscasse um mata-borrão para aquelas desfocadas imagens.
De repente, lhe chega aos ouvidos a algazarra de gente correndo. O clamor e a vozearia chegam no mesmo caminho, mas em oposta direcção. E começam a passar por ele homens correndo, cantando e gritando. São os presos que escapam da cadeira. Quem os soltara?
André apressa-se o quanto pode. Junto à prisão se aglomera gente, em confuso atribulício. O cego vai-se esgueirando e penetra nas entranhas do edifício. Não há lá ninguém. Seus passos ecoam no corredor. As portas gemem, ao sabor da brisa. Milhares de papéis se borboleteiam pelo chão.
-Inspector Castro!
Andaré chama, sem convicção. Sabe que não haverá resposta. Retarda o passo ao chegar à sala da tortura. Um corpo atrapalha o caminho, à entrada. É Chico Soco-Soco, o cipaio torturador. Tinha sido morto à pancada. Andaré dá graças de ver tão inexactamente. O homem tinha sido estrilhaçado por mil vinganças. O cego entra na sala Kula, o lugar das torturas. Se apercebe das manchas vermelhas na parede. E no chão, estendido, está Lourenço Castro.
O cego fica à porta como se lhe doesse entrar. Parece triste como a água num poço. Uma mão sobre o ombro o assusta. Reconhece o rosto. É um ex-preso que entende ver, em último relance, o lugar onde tanto sofrera.
-Mataram Lourenço?
-Nós matámos o pide preto.
-Então quem matou o branco?
-Cada qual mata a sua raça.
E o preso, sem mais, se extingue no escuro do corredor. O cego fica só, com essa dúvida roendo-lhe a mente. Quem matara Lourenço de Castro? Por momentos, naquele silêncio de tumba, lhe parece reconhecer um perfume familiar. É aroma de mulher. Num instante, as memórias se avalancham. Passam Custódio, Marcelino, Dona Graça, os idos e revindos, cores antigas que agora se convertiam em sons. Das lembranças emerge uma infindável voz que murmura o que ele, no momento, deve executar.
Andaré Tchuvisco vai à arrecadação da prisão, tira uma lata de tinta branca e um velho pincel. E com amplos gestos ele espalha largas demãos sobre a parede. A cada pincelada, a paisagem do quarto se lava. Não há sangue, não há desordem. Não é só o morto que se esvai: a própria morte desvanece. O cego sente que seus olhos se tornam inundáveis. Como se abrisse um imenso pátio onde toda a luz espraiasse. E sente que a prisão, a cada pincelada, se vai dissolvendo, a pontos de total inexistência. Como se o pincel que empunhasse fosse areia, na mão do vento, apagando pegadas no deserto.
In: Vinte e Zinco, pgs 136 a 139.
Incluo também esta fala que inicia o livro e que se refere expressamente ao seu título:
"Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento.
Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia está por vir" Fala da adivinhadora Jessumina