Imaginem uma dúzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um pipo de vinho. Como nenhum deles tem mais direito que os outros a beber do pipo, combina-se que cada um ponha a boca ao espicho e beba enquanto os pontapés dos outros o não contundirem até ao ponto de o obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida pelos golpes aplicados pela companhia. É exactamente o que há muito tempo tem sido feito pelos partidos portugueses com relação ao usufruto do poder que eles acharam na estrada, perdido.
Chegou finalmente a vez de pôr o pipo à boca a um partido excepcionalmente valoroso de sede e incontundível de fibra. Este partido não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações escandalizadas, de almocreves, retroam.
_Este partido abusa!
_Isto não vale!
_Isto não é jogo!
_Ele esvazia o pipo!
_Larga o pipo, pipa!
_Larga o pipo, pimpão!
_Larga o pipo, ladrão!
E incitam-se uns aos outros até à ferocidade:
_Chega-lhe rijo!
_Mais! Que lhe doa bem!
_Rebenta-me esse odre!
_Racha-me esse tonel!
_Ah, cão!
O partido, porém, continua a beber, e é insensível a tudo: à dor, ao insulto, ao chasco, ao impropério, à graça pesada, à insinuação pérfida e à alusão venenosa!
Em vista de tal pertinácia, que nós mesmos somos forçados a taxar de irregular, os partidos em expectativa do pipo confederam-se, ferem o pacto da Granja, constituem-se num só partido novo - numa só boca para o pipo. Fazem um programa, redigem um manifesto, vão de terra em terra pedindo ao País que intervenha. Precisamente lhes ocorreu esse momento que o pipo tem dono! Que é do País o pipo! (...)
Ramalho Ortigão, As Farpas
====
In: Diário da Liberdade, pg.303, de Aniceto AfonsoImagem: pixabay
Ver Ramalho Ortigão aqui, no Xaile
Pacto da Granja - aqui
Sem comentários:
Enviar um comentário