terça-feira, 26 de agosto de 2025

O pipo

  Imaginem uma dúzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um pipo de vinho. Como nenhum deles tem mais direito que os outros a beber do pipo, combina-se que cada um ponha a boca ao espicho e beba enquanto os pontapés dos outros o não contundirem até ao ponto de o obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida pelos golpes aplicados pela companhia. É exactamente o que há muito tempo tem sido feito pelos partidos portugueses com relação ao usufruto do poder que eles acharam na estrada, perdido.

Chegou finalmente a vez de pôr o pipo à boca a um partido excepcionalmente valoroso de sede e incontundível de fibra. Este partido não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações escandalizadas, de almocreves, retroam.

_Este partido abusa!

_Isto não vale!

_Isto não é jogo!

_Ele esvazia o pipo!

_Larga o pipo, pipa!

_Larga o pipo, pimpão!

_Larga o pipo, ladrão!




E incitam-se uns aos outros até à ferocidade:

_Chega-lhe rijo!

_Mais! Que lhe doa bem!

_Rebenta-me esse odre!

_Racha-me esse tonel!

_Ah, cão!

  O partido, porém, continua a beber, e é insensível a tudo: à dor, ao insulto, ao chasco, ao impropério, à graça pesada, à insinuação pérfida e à alusão venenosa!

  Em vista de tal pertinácia, que nós mesmos somos forçados a taxar de irregular, os partidos em expectativa do pipo confederam-se, ferem o pacto da Granja, constituem-se num só partido novo - numa só boca para o pipo. Fazem um programa, redigem um manifesto, vão de terra em terra pedindo ao País que intervenha. Precisamente lhes ocorreu esse momento que o pipo tem dono! Que é do País o pipo! (...)

Ramalho Ortigão, As Farpas



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In: Diário da Liberdade, pg.303, de Aniceto Afonso
Imagem: pixabay
Ver Ramalho Ortigão aqui, no Xaile
Pacto da Granja - aqui

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