terça-feira, 4 de junho de 2013

O cão sem plumas

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra, 
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açucares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?

João Cabral de Melo Neto


»»»»


Mais um poeta brasileiro que aqui nos chega pela mão de Canto da Boca.
Realmente, foi através de indicações suas, em livro postado no seu blogue e aqui em comentários, que cheguei a este poeta e a este poema.
Aliás, este é o segundo poema que aqui publico. O primeiro foi 'A Palavra Seda'.

Muito obrigada, amiga.

Olinda 



»»»»»

O cão sem plumas, 1949-1950:Ver análise e poema na íntegra: aqui

12 comentários:

  1. Foi um dos três escritores de língua portuguesa a receber o mesmo Prémio que Júdice recentemente. Sophia Andressen foi a outra premiada.

    Querida Olinda, boa semana

    ResponderEliminar
  2. Não conhecia este poeta mas gostei do que li. E já pesquisei um pouquinho, agendando o resto para outro dia :))

    Beijinho

    ResponderEliminar
  3. Belíssimo poema! Qual é o rio? Lembrei-me do Amazonas...

    ResponderEliminar
  4. Não conhecia. Confesso. aliás, que é muito reduzido o meu conhecimento sobre a poesia brasileira. Mas foi uma agradabilissima surpresa. Gostei.
    abraço.

    jorge

    ResponderEliminar
  5. Belo poema...Espectacular....
    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  6. É bom esta permuta de poesia entre os blogues porque é uma forma
    de alargar o leque de conhecimento de vários poetas de diversos
    países.
    Desejo que esteja bem.
    Bj.
    Irene Alves

    ResponderEliminar
  7. Gostei muito deste poema e da interpretação que vi na página por ti indicada. Quantos rios como esse não correm por esse mundo afora? Rios sujos não só pela falta de cuidado, mas também pela miséria que são obrigados a contemplar durante o seu percurso; ficam tristes, os rios; as sua águas escurecem...ficam como que estagnadas, perdendo a força para seguirem em frente tamanha a desgraç que vêem. Muitas vezes ajudam esses rios o povo miserável, permitindo-lhes um banho fresco, irrigando as pobres hortas, matando-lhes a sede. Mas há males que nenhum rio consegue apagar, seja nas margens pobres de um rio sujo, seja naquela bela mansão ladeada por um belo rio de águas claras e límpidas.; os males cometidos pelo ser humano contra os seus semelhantes, principalmente contra as crianças. Não sabia da sorte desse principezinho, Olinda e fico-te muito agradecida por essa informação. è como costumo dizer...O TER não significa felicidade para as crianças; o que lhes importa é o carinho, amor e atençaõ . Infelizmente, chegamos à triste conclusão de que o ser humano não muda. Continua a cometer as mesmas atrocidades. Um beijinho e obrigada pelas informações sempre tão interessantes que aqui nos deixas. Fica bem, amiga!
    Emília

    ResponderEliminar
  8. Olá Olinda,
    Esse escritor é muito bom, já li algumas escrita dele.
    Esse poema é fantástico.
    Andei um pouco ausente da net, muitas coisas pra resolver e faltou tempo pra cuidar do blog, mas aqui de volta estou.

    Ótima semana!
    Beijos!

    ResponderEliminar
  9. Uma belíssima escolha. Um poema para se ler e reler, uma construção magnífica. Bjs.

    ResponderEliminar
  10. Há rios assim
    que só ladram nas margens
    e nunca serão água de beber

    Grande poeta

    ResponderEliminar
  11. Um poema extraordinário. Na minha meninice vivia junto a um rio. Quando a fome era maior, e não havia dinheiro para ir comprar comida, meu pai vestia uns calções velhos, pegava numa lata e metia-se no lodo. Lamujinhas, ostras ou canivetes, sempre trazia alguma coisa para nos aquietar o estômago. Porque o Coina quando a maré vaza fica só lama.
    Por isso e pelos mangues que a globo mostrou há anos este poema tocou-me.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  12. O rio ao qual ele se refere nesse poema, é o Capibaribe (em tupi-guarani, Caapiuar-y-be, língua dos nativos brasileiros, significa, "capivara líquida"), embora o Recife, seja entrecortado por outros, como por exemplo: Beberibe, Tejipió, Pina e Jordão (além de canais, que atravessam a cidade) que interligam três ilhas, formando assim, o Recife, que está abaixo do nível do mar, quem aqui chega de navio, têm uma visão inesquecível da cidade...

    Como sabes, querida amiga (e todos os que privam da minha intimidade), João Cabral está para mim, do mesmo modo que Pessoa está para a humanidade inteira, rs. Amo-o! Sou sua leitora e admiradora incansável,ele é possuidor de um estilo incomparável, único (de acordo comigo, repare que estou no campo das subjetividades)... É duma importância vital na minha vida.

    Tenho um diálogo com ele, que reproduzi no meu blogue, observando a vida, e tentando lhe dizer como está essa terra, o Recife, que ele tanto amava. Ao longo do texto, poderás perceber as referências da nossa gente, a nossa territorialização, as nossas fronteiras (o Recife é tão particular), podes conferir aqui: http://cantodaboca.blogspot.com.br/search?q=E+agora+Jo%C3%A3o?

    Deixo um beijo grande, cingido de carinho e amizade, além de um enorme agradecimento pela sua atitude generosa e nobre. Deveras sinto-me muito honrada em poder figurar em seu blogue, e ainda mais trazendo este grande homem, e poeta pernambucano.

    ;))

    ResponderEliminar