segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Oito individualidades memoráveis (5)




Negócio de Pomba


Falara-lhe da última vez, na noite da bordoada, com uma simpatia que não dava margem a dúvidas. Um perfume e um aperto intencional na mão. Por baixo da mantilha o mesmo viço antigo, a mesma humidade luminosa, talvez os mesmos olhos que desciam do alto da janela nos tempos do namoro à noitinha. E o pai ao lado, muita festa para a festa.

Sim; tudo isto entrava mesmo no sistema de raciocínios, de significações. Mas se a gula da herança de Renato entrasse também na atitude do velho Peixoto visitando-o, com as suas falinhas pela mansa, o seu veneno de apagar e acender nos olhos verdes, como o pintavam e conheciam de ginjeira na vila e arredores? Que diabo! Não. O Peixoto não tinha necessidade nenhuma de casar a filha rica - ele que era um dos maiores contribuintes do concelho e o maior proprietário de casas das portas da vila para dentro. A Ângela não faltava partidos: o Dr Delegado, o neto do morgado Camelo, o filho do Pires da Ribeira dos Pães. Tudo rapazes perfeitos e ricos ou bem colocados. Ele, Renato, não tinha posição nem fidalguia; um boato de herança no Brasil não é que ia dourá-lo.

E então pensou que, tendo sido o primeiro namoro de Ângela e não sendo peste nenhuma, podia muito bem acontecer que em casa do Peixoto estimassem vê-los unidos, não sendo então indiferente a uma família rica a possibilidade de Renato levar alguns bens ao casal, por causa do futuro dos netos.

E pronto. Aquela doce palavra familiar subtilizava tudo. Peixoto passava a andar no quarto com passos ainda mais suaves - o avô, para não acordar o netinho... Quem estava quase a dormir era Renato, mas quem fazia o Peixoto andar com cuidado nos tacões era um ser para diante, uma coisinha de nada nuns braços, numa covinha de colchão ou num cesto, capaz de ficar horas e horas debaixo do tecto da casa de Teotónio Lobão a mexer com as mãos uma na outra, e completamente urinadinho...

In:A casa fechada, pg 116 - Obras Completas Vol. VI


e a história continua...



Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva - (1901-1978

foi ficcionista, poeta, cronista, ensaísta, biógrafo, historiador da literatura e da cultura, jornalista, investigador, epistológrafo, filólogo e comunicador televisivo, para além de toda a actividade de docência. O seu nome consta da lista de colaboradores da Revista dos Centenários publicada por ocasião da Exposição do Mundo Português e nas revistas, Panorama (1941-1949) Conímbriga de 1923, Renovação (1925-1926), Atlântico e Litoral(1944-1945).

Destacou-se como autor de Mau Tempo no Canal, mas ele dizia-se antes de tudo um poeta.



Já não escreverei romances
Nem contos da fada e o rei.

Vão-se-me todas as chances
De grande escritor. Parei.

Mas na chispa do verso,
Com Marga a aquecer-me,
Já não serei disperso
Nem poderei perder-me.

Tudo nela é verbo e vida;
Xale, cílio, tosse, joelho,
Tudo respinga e acalma.

Passo, óculos, nada é velho:
Quase corpo, menos que alma.

Já não lavrarei novelas,
Ultrapassado de ficto:
A vida dá-me janelas
A toda a extensão do dicto.

Mas sem elas, mas sem elas
(As suas mãos) fico aflito.

Vitorino Nemésio, 
in "Caderno de Caligraphia 
e outros Poemas a Marga"


Fortemente marcado pelas raízes insulares, a vida açoriana e as recordações da sua infância percorrem a obra do escritor, numa espécie de apelo, revelado pela ternura da sua inspiração popular, pela presença das coisas simples e das gentes, e pela profunda humanidade face à existência e ao sofrimento da vida humana

Continuemos a ler aqui a sua biografia e veremos quão rica é a sua Obra.

De referir o Programa na RTP1, "Se bem me lembro", programa que marcou uma época em que ainda se discutia e se falava de assuntos que interessavam a todos. 





Trago este video em que se fala do seu percurso. Ilhéu e comprometido com a vida. E apesar de viver longe, nunca esqueceu as suas raízes.



Um espécime da rica Flora Açoriana




Tenham uma boa semana, amigos.

Abraços

Olinda


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SÉRIE

Oito individualidades memoráveis (4)

Oito individualidades memoráveis (3)

Oito individualidades memoráveis (2)

Oito individualidades memoráveis (1)



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Imagem: Flor trazida da Geoparque Açores

16 comentários:

  1. Sempre interessantes as suas publicações. E justas ao lembrar grandes autores de que pouco se fala.
    Um abraço.

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  2. Boa nova semana, querida amiga Olinda!
    Mais uma das "Individualidades Memoráveis"...
    Sabe, percebo que os grandes poetas não se vêem assim ... Tal como ele diz:
    "Vão-se-me todas as chances
    De grande escritor. Parei."
    Outra faceta dos grandes é a humildade imensurável.
    Fico impressionada como sabem discernir seus potenciais com dignidade e postam ou escrevem textos deslumbrantes sem ambição descabida .
    Fico com esta nuance do precioso post seu.
    Há um manancial de argumentos para os demais amigos pôr aqui.
    Tenha novos dias abençoados!
    Beijinhos com carinho fraterno

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  3. Muy interesante. Te mando un beso.

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  4. Amiga Olinda,
    “Vitorino Nemésio” escreveu páginas belíssimas e, embora passe discretamente aos olhos de muitos leitores, a culpa não é do estilo de literatura, a realidade é que as pessoas perdem cada vez mais o hábito de manusear os livros.
    Ele mesmo entendeu quando disse: “Minha casa é uma concha...” - que sua literatura primeiro se fechou (doente na concha) e depois emergiu como uma pérola magnífica, diferente de escritores notórios que já haviam surgido com seus nomes aclamados pela crítica literária.
    “Arrependo-me de a meter num romance. Já não escreverei romances. Já velho e doente. O poema em que te busco é a minha rede.” - e a rede de “Vitorino Nemésio” não era social, era de pano, onde cochilava as suas ideias, para acordar: “nem florescendo no orvalho como a rosa, nem azul como a montanha...”
    Um abraço e boa semana!!!

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  5. Sempre gostei de ler Vitorino Nemésio em qualquer género literário, desde a poesia até ao romance, passando por ensaios, crónicas, etc., etc.
    E nunca perdi o seu "Se bem me lembro" na RTP. Eram momentos imperdíveis.
    Um abraço e boa semana.

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  6. Bom dia:- Um grande poeta, Vitorino Nemésio.
    .
    Saudações cordiais. Uma semana feliz.
    .
    Pensamentos e devaneios poéticos
    .

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  7. Também concordo que Vitorino Nemésio seja uma individualidade digna de destaque. Ele teve sempre uma forma muito peculiar e moderna de se exprimir. Ainda me lembro de como me impressionei ao ler "Mau tempo no canal". E o programa da televisão, "se bem me lembro"? Não podemos esquecê-lo nem deixar que seja esquecido.
    Sempre bom vir aqui, minha Amiga Olinda.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  8. Confesso que não conheço muito sobre ele. Obrigada por partilhar. Boa semana!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  9. Vitorino Nemésio é, sem dúvida, um dos nossos excelentes escritores!

    Abraço

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  10. Querida amiga
    Lembro-me tão bem de Vitorino Nemésio na televisão! Adorava ouvi-lo, e não perdia um programa.
    Li, gostei imenso e faz parte da minha biblioteca, "Mau tempo no canal".
    Um dos vários excelentes escritores de que nos podemos orgulhar.

    RE: Muito obrigada pelas tuas palavras de carinho e alento lá no meu canto. Lentamente, vou recuperando, embora ainda esteja longe da normalidade. Aos poucos vou visitando os blogues amigos, mas não posso estar muito tempo no computador.
    Um grande e grato abraço, minha querida.

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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    Respostas
    1. Querida Mariazita
      Que alegria ver-te aqui. Muito obrigada pelas tuas palavras.
      Já sabes, não podes exagerar. Volta aos poucos.

      Sim, Vitorino Nemésio deixou bem marcada a sua presença
      na Literatura Portuguesa não só através da sua Obra como também
      da sua personalidade bem vincada.

      Continuação de boas melhoras.
      Beijinhos
      Olinda

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  11. Excelentes e Memoráveis as obras do escritor/poeta Vitorino Nemésio,Olinda.
    Ja li alguns poemas dele e preciso com tempo andar pelos links e e também de outros da sua série de 'individualides'.Bem inteessante rever.
    Obrigada,Olinda pela preciosa e vasta pesquisa que tens nos enriquecido .
    Um abraço e bons dias.

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  12. Boa tarde Olinda,
    Gostei imenso de ler aqui Vitorino Nemésio e que enorme orgulho tenho por ele dar nome à rua onde moro.
    Ainda me recordo do programa Se bem me lembro, (e que saudades), que fazia parar tudo em casa dos meus pais para o ouvir. Tão simples, tão genuíno.
    Um beijinho, minha amiga, e muito obrigada por este belo momento.
    Ailime

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  13. Boa escolha, querida amiga Olinda! Vitorino Nemésio trouxe para a escrita a beleza das ilhas, como exemplifica o poema. Lembro-me tão bem da figura e da voz ! Realmente engrandeceu a literatura portuguesa.
    Fico feliz por vir aqui.
    Saudades. Um beijo.

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  14. Um "post" que é extremamente belo e fundamentado!
    Tão bom recordar aquela voz característica...
    Gosto muito de te ler.
    Um beijinho

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