quarta-feira, 29 de julho de 2020

Rumores da História

Para que serve a História? Pergunta feita mais do que uma vez aqui neste espaço, acabando quase sempre por não encontrar uma resposta que se enquadre na espuma do tempo que temos vindo a atravessar. Diz-se que precisamos conhecer o passado para avaliarmos o presente e prepararmos o futuro. 

Mas, na realidade, não é o que constatamos. À História como disciplina e matéria de investigação não tem sido dada a importância devida. Depois admiramo-nos da ignorância que lavra não só em relação à nossa própria história como no que se refere à história mundial.




Sabemos que ela, a História, servia, essencialmente, para cantar os feitos individuais dos heróis, ou seja, centrada em personalidades, acabando por ser uma crónica de acontecimentos, une histoire événémentielle

A partir do movimento historiográfico de L'École des Annales, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch em 1929, verifica-se a tendência para se ir mais além, focando-se na substituição do tempo breve pelos processos de longa duração com o objectivo de tornar inteligíveis a civilização e as mentalidades. 

Fernand Braudel continua essa visão, preponderante nos anos 1960 e 1970, e Jacques Le Goff conduz a terceira geração dos Annales, que ficou conhecida como a Nova História, segundo a qual toda a actividade humana é considerada história, rompendo assim com a compartimentação das Ciências Sociais (História, Sociologia, Psicologia, Economia, Geografia humana e assim por diante) e privilegiando os métodos pluridisciplinares.

Nisso deveria centrar-se o estudo e a análise da pegada humana. E são tantos e tão variados os temas que compõem o percurso da humanidade. Um deles, que parece incluir todos os outros, é a tendência de dominação de uns povos em relação a outros. Dominação concretizada através de invasões, guerras, espoliações, tanto no plano económico como no do roubo da identidade e dignidade. E esta problemática conhece o seu maior alcance quando se fala da escravatura.  Se queremos entender essa questão deveremos ser estudiosos e interessados. Há que ir buscar a sua génese ao princípio de tudo, desde que o mundo é mundo. 

Muitas das obras monumentais que continuamos a admirar, fazendo turismo, é fruto de trabalho escravo. Lembram-se das pirâmides? E isto é apenas um dos muitos casos. Povos aculturados, dominados nas suas tradições, como por exemplo, homens cultos da antiga Grécia levados para servirem de preceptores a filhos dos grandes de Roma, ficando em situação de menoridade. E Reis africanos que, muito embora praticassem a escravatura entre rivais, foram depois levados a participar numa emboscada de proporções inimagináveis: a escravatura, em grande escala, de povos africanos conduzindo à sua dispersão por vários pontos do globo, muitos desconhecendo ainda o continente donde partiram os seus avós. 

De nada vale andarmos por aí a destruir estátuas e a eliminar este ou aquele filme, livro, pintura, de listas elaboradas em dado momento, cometendo em muitos casos erros de avaliação. Uma das maiores lições que deveremos ir buscar ao passado é a vontade de não repetir erros cometidos em contextos diferentes daquele em vivemos. 

Atentemos nisto: há muitas formas de escravatura que enfermam o presente. Continuamos a ser escravos de nós mesmos, dos nossos preconceitos e, muitos de nós, senhores daqueles a quem dizemos amar; a violência doméstica é sinal disso. Há também crimes de ódio recalcado, racismo latente e muitas vezes expressado de forma assustadora, como vimos há poucos dias neste Portugal de brandos costumes. 

Além do mais, existe: a prepotência das autoridades e regimes que dificultam o acesso à justiça; o tráfico de seres humanos de forma mais ou menos encapotada, para realização de trabalhos vários, com anulação da identidade, bem como para exploração sexual. 

Há tanto, tanto por que lutar e reclamar. Façamo-lo de forma séria e assertiva de modo a que nos entendam. Procuremos compreender e assinalar momentos do passado que tenham repercussão no presente. Para isso a História tem um papel relevante, devendo ser colocada no lugar que lhe é devido, para o nosso bem, na Educação, no quotidiano. 

E lembremo-nos de que há especialistas na matéria: os historiadores. Esses deveriam ser chamados sempre que a nossa sanidade é posta à prova. 

Boa quarta-feira, meus amigos.

Saúde.



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imagem: daqui
Ver, se interessar:
École des Annales
Escravatura

sábado, 25 de julho de 2020

Vi-te



Na transparência da luz, numa tarde cálida de Verão, vinhas no teu cavalo branco atravessando a planície dourada salpicada de pontos verdes. De entre as cortinas, da maciez de sedas e cetins soube que eras tu. Adivinhei o teu perfil, o teu porte belo e sobranceiro. Ali fiquei cega pela claridade que emanava da tua figura. A espera tornou-se eterna na reverberação solar. Soube então que eras o desejado, apenas ilusão e miragem. 

Não era 
manhã de nevoeiro...

E ao longe o mar...



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imagem: net
Nota: a foto que inseri inicialmente não se via.
Agradeço à Cidália e à São por me avisarem.
beijo

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Rainha do Fado


Hoje, Centenário do nascimento de Amália. 


Não podia deixar de assinalar o dia, embora repetindo aquilo que todos nós sabemos. Redundante, dir-me-ão... mas deixá-lo.

Amália da Piedade Rebordão Rodrigues, 1920/1999, foi uma cantora, actriz e fadista portuguesa, geralmente aclamada como a voz de Portugal e uma das mais brilhantes cantoras do século XX.

Tornou-se conhecida como a Rainha do Fado e, por consequência, devido ao simbolismo que este género musical tem na cultura portuguesa, foi considerada por muitos como uma das suas melhores embaixadoras no mundo.


Marcante contribuição sua para a história do Fado, foi a novidade que introduziu de cantar poemas de grandes autores portugueses consagrados, depois de musicados, de que é exemplo a lírica de Luís de Camões ou as cantigas e trovas de D. Dinis.(Lembremo-nos de Alain Oulman).  Teve ainda ao serviço da sua voz a pena de alguns dos maiores poetas e letristas seus contemporâneos, como David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello, José Carlos Ary dos Santos, Alexandre O'Neill ou Manuel Alegre. aqui

De tantas e tão belas canções e fados maravilhosos, imaginem, escolho o senhor extra-terrestre...



É que gosto mesmo de ouvi-la neste registo.

Boa quinta-feira, meus amigos.


domingo, 19 de julho de 2020

O único impossível

Mordaças...A um poeta?
Loucura!

E por que não,
Fechar na mão uma estrela.
O Universo num dedal?

Era mais fácil
Engolir o mar
Extinguir o brilho aos astros

Mordaças a um poeta?
Absurdo!

E por que não
Parar o vento
Travar todo o movimento?

Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor
Desviar cursos de água com um sorriso

Mordaças!
A um poeta?
Não me façam rir!...

Experimentem primeiro
Deixar de respirar
Ou rimar...mordaças
Com liberdade

Ovídio Martins


Este é o homem das palavras excessivas e emotivas, como vimos em "Não vou para Pasárgada" e "Os flagelados do vento leste", aqui publicados anteriormente. 

Nasceu em São Vicente, Cabo Verde, em 17 de Setembro de 1928. Poeta, jornalista, co-fundador do Suplemento Cultural (1958, São Vicente). O seu envolvimento em actividades de promoção da independência valeram-lhe a pena de prisão e o exílio nos Países Baixos. 

Em Ilha a ilha. Dor a dor, post deste Xaile de Seda, tive a oportunidade de falar sobre o seu posicionamento face ao evasionismo, no que diz respeito aos poetas cabo-verdianos da geração claridosa.




Ovídio Martins dedica o poema "O único impossível", a Baltasar Lopes da Silva, também poeta e publicado neste blog, por diversas vezes.


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Poema: "O único impossível", in No reino do Caliban

terça-feira, 14 de julho de 2020

Para tão longo amor tão curta a vida

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo:-Mais servira, se não fora
pera tão longo amor tão curta a vida.









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in Líricas - pg 53

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Eu sou nada


Nada me pertence, nada

se afoga nesta terra deserta de cansaço

Nada é culpa, nada é nascido, tudo cria

embriões para que embriões possam nascer

Eu sou nada e se acaso me afogo

é porque não existo, como os meus amigos

como a arte de imaginar


E a natureza prende-me, se amo é por vir

de um céu imenso onde forças estranhas

me inventaram, e aos meus amigos, e a todo o tanto

que não existe sobre a terra coberta de tudos.


Mesmo deus que não existe me forjou

para a natureza que não existe, a minha

de ser minúsculo e gigante

e não existir

(1956-2020)



Nem a máxima "Penso, logo existo" parece encontrar espaço nas linhas destes versos. Apenas uma certa crise existencialista, em que o autor tanto nega como afirma a sua existência de "ser minúsculo e gigante". E qual o espanto? Nenhum, na verdade. Quantas vezes não somos confrontados com essa dualidade que existe e permanece em nós mais tempo do que o desejável? 
Daí, à sensação incómoda de que afinal somos nada vai um passo. 


E o nihilismo passaria a ser 
 palavra de ordem ou 
tendência viável.






De Manuel Cintra diz Raquel Nobre Guerra, uma sua amiga:

“Não era leve não era cool, não se observava na simpatia de todos, vendia poemas na rua (…) pedia dinheiros, tinha uma página de poesia, tinha o número de telefone na página de poesia, tinha gatos e cães falava deles como de amigos, lia poemas em toda a parte, incomodava, fazia tropelias, agia sobre os outros como quem via qualquer coisa. (…) Tinha sempre uma ponta de febre (…) Era quase tudo o que pomos de parte na vida real para depois nos refastelarmos com a ideia romântica disso.” aqui



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Poema: em Escombros, Lisboa: Caminho Editora, 1993, p. 23.
Publicado por : e-cultura e Meia-noite todo o dia (blog)
Título do post retirado do Poema

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Águas Bravias


Abre-se a paisagem ao horizonte
Em delírio de olhos desmedidos.Atmosferas recidivas
Como se foram ainda açucenas colhidas.
E o regaço. E o joelho incauto desguarnecido.
E tu viesses com a leveza de águas
Em mandil de coado tempo.
Chuva miudinha
A regar emoções e desalinhar
A orla dos sentidos.

Ergo-me declinando o nome. Caminheiro
Das devoções pagãs que me visitam.
Tão faceiras, que nelas me reinvento
Em néscio alvoroço.

E em ti caminho.
Música que invento no declive de teu corpo
E ecos recolhidos. Toada de abismos
Em coleante rumo de passos
E profundos rios.

Águas bravias
Em cascata de enredos
E mistérios.

Manuel Veiga


Da chuva miudinha a rios profundos desaguando em águas bravias - cascata de enredos e mistérios. Assim escreve este Poeta, Manuel Veiga, quando fala de emoções. Nós já o conhecemos e conferimo-lo em mais este belo Poema, 
de entre tantos outros.




Poema: Águas Bravias - Caligrafia Íntima, pg 13
Blog do autor: Relógio de Pêndulo