quarta-feira, 8 de julho de 2020

Eu sou nada


Nada me pertence, nada

se afoga nesta terra deserta de cansaço

Nada é culpa, nada é nascido, tudo cria

embriões para que embriões possam nascer

Eu sou nada e se acaso me afogo

é porque não existo, como os meus amigos

como a arte de imaginar


E a natureza prende-me, se amo é por vir

de um céu imenso onde forças estranhas

me inventaram, e aos meus amigos, e a todo o tanto

que não existe sobre a terra coberta de tudos.


Mesmo deus que não existe me forjou

para a natureza que não existe, a minha

de ser minúsculo e gigante

e não existir

(1956-2020)



Nem a máxima "Penso, logo existo" parece encontrar espaço nas linhas destes versos. Apenas uma certa crise existencialista, em que o autor tanto nega como afirma a sua existência de "ser minúsculo e gigante". E qual o espanto? Nenhum, na verdade. Quantas vezes não somos confrontados com essa dualidade que existe e permanece em nós mais tempo do que o desejável? 
Daí, à sensação incómoda de que afinal somos nada vai um passo. 


E o nihilismo passaria a ser 
 palavra de ordem ou 
tendência viável.






De Manuel Cintra diz Raquel Nobre Guerra, uma sua amiga:

“Não era leve não era cool, não se observava na simpatia de todos, vendia poemas na rua (…) pedia dinheiros, tinha uma página de poesia, tinha o número de telefone na página de poesia, tinha gatos e cães falava deles como de amigos, lia poemas em toda a parte, incomodava, fazia tropelias, agia sobre os outros como quem via qualquer coisa. (…) Tinha sempre uma ponta de febre (…) Era quase tudo o que pomos de parte na vida real para depois nos refastelarmos com a ideia romântica disso.” aqui



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Poema: em Escombros, Lisboa: Caminho Editora, 1993, p. 23.
Publicado por : e-cultura e Meia-noite todo o dia (blog)
Título do post retirado do Poema

12 comentários:

  1. Poema fascinante de Manuel Cintra. Adorei esta publicação
    .
    Fique bem
    Saudação poética

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  2. Não oscilo, sou mais para o nada!

    Abraço

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  3. Fantástica publicação! Amei o poema!!
    -
    Beijos e um excelente noite
    Tenho novo Post...

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  4. Boa noite de paz interior, querida amiga Olinda!
    Que vídeo, minha amiga!
    "Então aguente firme"...
    Como a frase me disse ao 💙 ...
    Sua sensibilidade me encanta.
    Um poema interessante, onde forças estranhas me inventaram.
    Não conhecia o escritor.
    Você é criteriosa nas escolhas, tão bonito!
    Tenha dias abençoados, amiga!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  5. Que poema, amiga Olinda!! O que emociona profundamente é a tristeza, é a vida sofrida, é a solidão em que muitos vivem; escreveu poesia, foi tradutor, jornalista, ator e nada... Li sua vida no link, homem amargo.
    A letra da música é a amargura escancarada de muitas pessoas, ninguém é sempre feliz, acho que o ser humano tem mais recaídas, são crises de profunda tristeza e desânimo para muitos. Fiquei tocada com a tristeza desse poeta, vi seu rosto, morreu abandonado, só. E o belo poema entra na música ou a música entra no poema, tanto faz.
    Ótimo você ter trazido Manuel Cintra , EU NÃO SOU NADA, taí uma crise existencial em poesia.
    Um beijo, querida amiga, uma boa continuação de semana.

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  6. Querida Olinda
    Manuel Cintra revela-nos, neste intrigante poema, a sua alma inquieta, inconformada, em constante desacordo com a sociedade em que estava inserido.
    Um poema escrito há cerca de trinta anos e que estaria perfeitamente actual se feito nos dias de hoje, em que muitas pessoas sofrem de crises existenciais devido aos conturbados tempos que vivemos.
    O vídeo é lindo, e essa música e poema verdadeiramente extraordinários. Adoro!

    Minha querida, fico desejando e esperando que a tua vida decorra sem sobressaltos.

    RE - A Nanda revelará todos os seus segredos, é claro! Dela, e não só... Alguns já foram mostrados, e os outros não ficarão esquecidos. Aliás... não vai faltar muito tempo. Acho que esta história já vai demasiado longa... não achas? Tenho que lhe pôr fim 😊

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  7. Poema (e poeta ) niilista
    assim o sugere a amiga Olinda.

    por mim, concordo e... passo!

    abraço

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  8. Muito boa noite Olinda,adoro essa música e canção que aqui partilhaste!! Quanto ao teu poema,lá muito no fundo mas mesmo lá no fundo,nós não somos nada mesmo,pois nascemos e morremos,por isso,não somos mesmo nada!! Tem um excelente mês de Julho com muita alegria,muita paz e muita saúde para ti,fica bem,tudo de bom para ti,muitos beijinhos!!

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  9. Na verdade nós não somos nada! Flutuar assim, é a dor do Poeta. Gostei.


    Beijo
    SOL

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  10. Só poeta pode dizer uma coisa e o seu contrário, mas por vezes essas afirmações são apenas aparentes.
    A sua escolha poética é muito interessante. Obrigado pela partilha, já não lia o Manuel Cintra há tempos.
    Tal como a sugestão musical, que gosto muito.
    Bom fim de semana, querida amiga Olinda.
    Abraço.

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  11. Tão balançado é o tempo! E a vida contraditória em si mesmo.

    Acompanhada por este magnífico som, dou por mim a pensar que tem que haver uma ponta de febre para aportar algo de novo.

    Gostei de caminhar na poesia de Manuel Cintra.

    Beijos, querida amiga Olinda.

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  12. Um poeta deve ser incómodo. Disso sabia este poeta Manuel Cintra que dizia "eu sou nada" e afinal era tanto... Belíssimo, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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