sábado, 25 de novembro de 2023

'sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia'

Na data do seu nascimento, lembramo-lo, não que não tenha sido suficientemente lembrado nos últimos tempos, embora não pelo seu talento que é inegável, mas em função da trasladação das suas ossadas para o Panteão Nacional. E pensar que este autor deixou expresso o desejo de ser enterrado em Verdemilho.

Li um texto muito interessante sobre os vários funerais de Eça, aqui, no Tempo Contado.




José Maria de Eça de Queiroz (25/11/ 1845 – 16/08/1900), também escrito Eça de Queirós, foi um escritor e diplomata português. É considerado um dos mais importantes escritores portugueses de sempre. Foi autor de romances de reconhecida importância, de Os Maias e O Crime do Padre Amaro. Os Maias é considerado por muitos o melhor romance realista português do século XIX.
Veja aqui

Não só estes livros. Há outros igualmente famosos, colecção em que foca os costumes da sociedade da época, de forma crítica. 

Por exemplo, A Relíquia. Quando o li fui até ao fim pensando que, realmente, o protagonista tinha conseguido, depois de muitas peripécias, trazer a relíquia, da Terra Santa, que a tia tanto ambicionava. Mas superou-se...até eu fiquei de boca aberta. 


 


Eça de Queirós deu a este romance o seguinte subtítulo: 'sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia”, máxima inscrita na estátua que se encontra na Praça Barão de Quintela, em Lisboa. Imagem acima.

Transcrevo a seguir um excerto, precisamente do momento em que se descobre de que teor era a Relíquia que Teodorico trouxera. Até ele ficou trespassado de horror:



"Tossi, cerrei os olhos: 

— É a coroa de espinhos! 

Esmagada, com um rouco gemido, a Titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o nos braços trémulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus colarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, de onde saía assombro e indignação! Justos céus! Magistrados e sacerdotes evidenciavam uma incredulidade — terrível para a minha fortuna! 

Eu tremia, com suores — quando o Padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou a mão da Titi a felicitá-la pela posição religiosa a que a elevava a posse daquela relíquia. 

Então, cedendo à forte autoridade litúrgica de Padre Pinheiro, todos, em fila, numa congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora. Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martelo em triunfo... 

— Teodorico! Filho! — berrou a Titi, arrepiada, como se eu fosse martelar a carne viva do Senhor. 

— Não há receio, Titi! Aprendi em Jerusalém a manejar estas cousinhas de Deus!... 

Despregada a tábua fina, alvejou a camada de algodão. Ergui-a com terna reverência; e perante os olhos extáticos, surgiu o sacratíssimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho. 

— Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! — suspirou a Titi a esvair-se de gosto beato, com o branco do olho aparecendo por sobre o negro dos óculos. 

Ergui-me, rubro de orgulho: 

— É à minha querida Titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!...

 Acordando do seu langor, trémula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo... 

Uma brancura de linho apareceu... A Titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente — e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz —espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary! A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada prega fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary! 

E pregado nela por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão com a oferta em letra encorpada: — "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" Assinado, M. M.... 

A camisa de dormir da Mary! Mal sei o que ocorreu no florido oratório! Achei-me à porta, enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, num desmaio. Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as acusações do Negrão bradadas contra mim junto à touca da Titi: 

— "Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona Patrocínio! Profanação do oratório!" Distingui a sua bota arrojando furiosamente para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem, como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas arquejavam, aflitas. E, ensopada em suor, entre as pregas da cortina, percebi a Titi caminhando para mim, lenta, lívida, hirta, medonha... Estacou. Os seus frios e ferozes óculos trespassaram-me. E através dos dentes cerrados cuspiu esta palavra: 

— Porcalhão."

A Relíquia - Eça de Queirós - pg 230 (livro online)

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E que dizer de As Farpas? Bem, deixo para falar disso numa próxima oportunidade. Como temos eleições à porta, abordá-las-ei nessa altura se vir que esses textos trazem alguma passagem que interesse...para o assunto em questão.


***

Amigos, vou ausentar-me por uns dias.

Publicarei os vossos comentários (se os houver) no meu regresso.

Abraços 

Olinda


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Imagens: net

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

"Diz-me coisas bunitas"

 Quantas e quantas vezes não trouxe a este Xaile a cantora Sara Tavares interpretando várias músicas na sua voz ímpar e mais ainda neste video em que nos diz "coisas bunitas"...



 Há pessoas que não deviam morrer. Deixam-nos um vazio difícil de preencher. Dir-me-ão que ela deixa a Obra na sua voz maviosa e, ao mesmo tempo, tão intensa. Mas fica a faltar sempre qualquer coisa.



 Não só em músicas com a toada e o ritmo africano, mas também em canções românticas e sentimentais, vemo-la a deixar a sua marca e a sua sensibilidade.



Uma pequena homenagem a esta Menina que nos surpreendeu no "Chuva de Estrelas" e continuou na sua curta vida a produzir música e a interpretar, descobrindo as suas raízes cabo-verdianas, africanas, sem nunca esquecer esse caldo de culturas de que somos feitos.



Deixas muitas saudades, Sara Tavares

Continuaremos a "Chamar a Música" ,

por ti, por nós.

E,

...

Esta noite vou servir um chá
Feito de ervas e jasmim
E aromas que não há
Vou chamar a música
Encontrar à flor de mim
Um poema de cetim

...

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Imagem: net

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Do nosso desejo



Árias pequenas.Para bandolim

***

Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores

Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.

Hilda Hilst


Hilda Hilst (1930-2004) foi uma poetisa, cronista, dramaturga e ficcionista brasileira. Fez parte da “Geração de 45” que buscava a reabilitação de regras mais rígidas para a composição do verso. Foi considerada uma das maiores escritoras do século XX.

Biografia

aqui

Bach

Ária na corda Sol (G) ou Ária da quarta corda é uma adaptação para
violino e piano do segundo movimento da Suíte nº 3 para orquestra, de J. S. Bach
Milton Mori - 
Toca-a no seu Bandolim. 
E que bem que soa!


Veja mais poemas de Hilda Hilst aqui, no Xaile de Seda.




Bom fim de semana, amigos.

Abraços

Olinda

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Imagem: Hilda Hilst

Poema

In:Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974)

pg 79 aqui

aqui


domingo, 12 de novembro de 2023

Oito individualidades memoráveis (6)

 


Por Todos os Caminhos do Mundo


A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
                                                          pelo mundo,

por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
                                                 num jardim nocturno,

ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
                                      o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.

in 'Mar de Sargaços



Fernando Gonçalves Namora, (1919 -1989) foi um médico e escritor português, autor de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nas décadas de 1970 e 1980. 

Com uma obra literária que se desenvolve ao longo de cinco décadas é de salientar a sua precoce vocação artística, de feição naturalista e poética, tal como a importância do período de formação em Coimbra, mais as suas tertúlias e movimentos estudantis. Ao dar-se o amadurecimento estético do neo-realismo e coincidente com as vivências dos anos 1950, enveredaria por novos caminhos, através de uma interpretação pessoal da narrativa, que o levaria a situar-se entre a ficção e a análise social.

Porém, foram romances como os Retalhos da Vida de um MédicoO Trigo e o JoioDomingo à TardeO Homem Disfarçado ou O Rio Triste, que vieram a ser traduzidos em diversas línguas, tendo inclusive, em 1981, sido proposto para o Prémio Nobel da Literatura, pela Academia das Ciências de Lisboa e pelo PEN Clube.

aqui

***


De Retalhos da Vida de um médico, um excerto:

“Todas as vezes que olho para a estrada percorrida, onde já ficou muito sangue, suor e lágrimas que a vida nos reserva, recordo certo trecho de um romance de Erico Veríssimo: um rapaz e uma rapariga transpõe a cerca da Universidade; acabam de lhes entregar o diploma de médicos, e com ele, um futuro de surpresas e euforias. Cá fora, no largo, onde a sombra altiva de uma estátua se levanta no céu estrelado, Olívia espalha pelo chão o ramo de flores que lhe haviam oferecido, enrola o diploma e por ele espreita, irreverente, os astros enigmáticos - um óculo mágico a desvendar o amanhã. O companheiro, com essa melancolia desiludida que vem depois das esperanças realizadas, espreme as mãos vazias; a vida abre-se de súbito a seus pés, inesperada, insondável como um abismo. Ele tem atrás de si durezas e humilhações e pressente que não pode haver outra coisa a aguardá-lo. Olívia, por seu lado, atende o futuro apenas com uma maravilhosa interrogação: o seu alvoroço tem o sabor salgado e excitante da luta; o que virá, será bom e terrível - mas sempre qualquer coisa imprevisível que vale a pena ser vivida.”
― Fernando Namora, Retalhos Da Vida De Um Médico.

Foi a primeira obra a ser adaptada ao cinema, 1962, seguindo-se a série televisiva da responsabilidade de Artur Ramos e Jaime Silva (1979-1980)*



Casa-Museu Fernando Namora, (Condeixa-a-Nova) aberto ao público em 30/06/1990
Foi aqui que viveu até aos dez anos de idade, onde descobriu o gosto pelo 
desenho e pintura e pela escrita.

Também existe uma escola secundária, homenageando este grande autor.


Em notícia de 8/11/2023, li que a escritora Lídia Jorge venceu o Prémio Literário Fernando Namora com o romance “Misericórdia”. aqui


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Tenham uma boa semana, amigos.

Abraços

Olinda


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Poema ; Citador
Imagens: net

*Biografia


SÉRIE

Oito individualidades memoráveis (5)



sexta-feira, 10 de novembro de 2023

L' été indien

 


No hemisfério norte dá-se o fenómeno de, no Outono, acontecerem dias estivais como o nosso Verão de São Martinho, por cá. Sabemos da lenda e da tradição das castanhas assadas, dos magustos, em suma.

Carlos do Carmo com o seu "Homem das Castanhas" e a sua voz quente, sabe como trazer-nos esse ambiente mágico. Por mim, gosto muito de andar pela cidade vendo o fumo a sair do carrinho das castanhas misturado com o nevoeiro.





Estes dias ganham cores belíssimas, as folhas apresentam tonalidades entre amarelos, castanhos, verdes...

Esta época é conhecida através de várias designações, entre elas, l'été indien.

Do ponto de vista científico, o “verão indiano” do norte são as últimas ondas de alta pressão do anticiclone dos Açores. Esse é o nome da enorme área de alta pressão no Atlântico. Sob sua influência estão os Estados Unidos, toda a Europa e a parte europeia da Rússia.

Joe Dassin eternizou-o. Oiçamo-lo




Meus amigos, tenham um bom dia de São Martinho.
Espero que o Sol se faça convidado.


Abraços

Olinda


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Veja aqui 

L'été indien au Canada - aqui


terça-feira, 7 de novembro de 2023

A Paz sem Vencedores e sem Vencidos





Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen, 
        (1919-2004)


"A poesia de 'Sophia de Mello Breyner Andresen é (…) uma das vozes mais nobres da poesia portuguesa do nosso tempo. Entendamos, por sob a música dos seus versos, um apelo generoso, uma comunhão humana, um calor de vida, uma franqueza rude no amor, um clamor irredutível de liberdade – aos quais, como o poeta ensina, devemos erguer-nos sem compromissos nem vacilações." (Jorge de Sena, "Alguns Poetas de 1938" in Colóquio: Revista de Artes e Letras, nº 1, Janeiro de 1959)








De regresso.
Tenham boa semana, amigos.
Abraços
Olinda

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Poema: citador

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Teias de afeto/Telas de carino





...de repente
o olhar fica cativo
da liberdade do sol a romper o ventre dos dias
e da ternura a florir nas tuas mãos


*


...nun zás
l mirar queda cautibo
de la lhiberdade de l sol a rumper de las antranhas de ls dies
i de la ternura a florir nas tues manos



Poema bilingue
In: Rio de Infinitos
Riu d'Anfenitos
Pgs 70/71


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Blog da Autora:



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Meus amigos estarei ausente por uns dias.

Abraços
Olinda




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Imagem: net