"Tossi, cerrei os olhos:
— É a coroa de espinhos!
Esmagada, com um rouco gemido, a Titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o nos braços trémulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus colarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, de onde saía assombro e indignação! Justos céus! Magistrados e sacerdotes evidenciavam uma incredulidade — terrível para a minha fortuna!
Eu tremia, com suores — quando o Padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou a mão da Titi a felicitá-la pela posição religiosa a que a elevava a posse daquela relíquia.
Então, cedendo à forte autoridade litúrgica de Padre Pinheiro, todos, em fila, numa congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora. Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martelo em triunfo...
— Teodorico! Filho! — berrou a Titi, arrepiada, como se eu fosse martelar a carne viva do Senhor.
— Não há receio, Titi! Aprendi em Jerusalém a manejar estas cousinhas de Deus!...
Despregada a tábua fina, alvejou a camada de algodão. Ergui-a com terna reverência; e perante os olhos extáticos, surgiu o sacratíssimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.
— Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! — suspirou a Titi a esvair-se de gosto beato, com o branco do olho aparecendo por sobre o negro dos óculos.
Ergui-me, rubro de orgulho:
— É à minha querida Titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!...
Acordando do seu langor, trémula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo...
Uma brancura de linho apareceu... A Titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente — e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz —espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary! A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada prega fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary!
E pregado nela por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão com a oferta em letra encorpada: — "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" Assinado, M. M....
A camisa de dormir da Mary! Mal sei o que ocorreu no florido oratório! Achei-me à porta, enrodilhado na cortina verde, com as pernas a vergar, num desmaio. Estalando, como achas atiradas a uma fogueira, eu sentia as acusações do Negrão bradadas contra mim junto à touca da Titi:
— "Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona Patrocínio! Profanação do oratório!" Distingui a sua bota arrojando furiosamente para o corredor o trapo branco. Um a um, entrevi os amigos perpassarem, como longas sombras levadas por um vento de terror. As luzes das velas arquejavam, aflitas. E, ensopada em suor, entre as pregas da cortina, percebi a Titi caminhando para mim, lenta, lívida, hirta, medonha... Estacou. Os seus frios e ferozes óculos trespassaram-me. E através dos dentes cerrados cuspiu esta palavra:
— Porcalhão."
A Relíquia - Eça de Queirós - pg 230 (livro online)
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E que dizer de As Farpas? Bem, deixo para falar disso numa próxima oportunidade. Como temos eleições à porta, abordá-las-ei nessa altura se vir que esses textos trazem alguma passagem que interesse...para o assunto em questão.
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Amigos, vou ausentar-me por uns dias.
Publicarei os vossos comentários (se os houver) no meu regresso.
Abraços
Olinda
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