quarta-feira, 21 de março de 2018

Tabacaria

Não sou nada.



Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 


Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. 


Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 


Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?



 Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta 
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordámos e ele é opaco, 
Levantámo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 





(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 


(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! 
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 


Vivi, estudei, amei, e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. 


Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 


Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 




Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 


Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 



O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. 
(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. 





Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


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Poema: Citador
Imagens: Pixabay 

16 comentários:

  1. Estudámos este poema há dois anos. Não me seduziu, como não me seduziu tudo o que já li dele. Ouvido ficou um pouco melhor, mas ainda assim não dá.
    Decerto que será um bom poeta, mas de todos os heterónimos de Pessoa, este é o que menos gosto. Talvez porque não tenha arcaboiço intelectual para o entender, não sei.
    Abraço

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  2. "(Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates."

    bastam-me este versos!
    e a voz do Mário Viegas a declinar todo o poema!

    gostei muito de ouvir. aqui
    abraço

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  3. OI OLINDA!
    AH, A CABEÇA DOS POETAS, ENTENDÊ-LAS? IMPOSSÍVEL SE NEM ELES PRÓPRIOS O CONSEGUEM.
    VALEU A PARTILHA.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  4. olá, querida Olinda...

    neste dia, não poderia ter escolhido melhor poema que este, do qual sei de cor as primeiras linhas.

    é um poema vasto, qto tão vastos são os estados de alma do poeta e as situações vividas e por viver. terá sido ele nada ou terá sido quase tudo. quantas personagens envergou... muitas e tantas foram, que teve de criar heterónimos e alvaro de campos é talvez o mais confuso, entre aspas, das ideias, mas o que mais seduz. há tanta interrogação e certeza naquilo que escreveu.

    a tabacaria foi e continuará a ser o poema emblemático de pessoa. parabéns pela escolha e pela declamação de mário viegas.

    grata pela sua visita e inteligente comentário deixado no meu blogue.

    beijos e dias felizes.

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  5. Uma bela escolha partilhar conosco tão belo poema
    Poetas... sempre nos deixam questionamentos e interrogações acerca de seus dizeres e pensares
    Grande beijo amiga

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  6. Incontornáveis, para mim, são Camões e Pessoa (ou melhor o mundo pessoano). Tenho outros, muitos até, mas tão completos, não.
    Posto isto, eu apenas escrevinho. Ponto!
    Em todo o caso, agradeço as manifestações que me vão deixando, agradando-me, particularmente, quem me "sabe ler", como é o teu caso!
    Parabéns pela escolha!
    Bjo meu, querida Olinda :)

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  7. Um dos grandes poemas do Fernando Pessoa.
    Uma boa escolha, portanto.
    Continuação de boa semana, amiga Olinda.
    Um abraço.

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  8. É uma festa de Poesia, este poema de Campos! A incontornável voz de M. Viegas...soberbo!

    Beijinho

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  9. Ah! como eu gosto de chocolates e de, neles, ser poesia. E, nela, todas as perplexidades e abandono dos sentidos.
    "Não serei nada.
    Nunca poosso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
    Entrar num "Xaile de seda" é sempre gratificante.
    Mário Viegas no seu melhor.
    Beijinho, querida Olinda.

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  10. Um dos grandiosos poemas de Pessoa... apenas um

    Convidamos-vos a ler o capítulo VI do nosso conto escrito a várias mãos "Voar Sem Asas"
    https://contospartilhados.blogspot.pt/2018/03/voar-sem-asas-capitulo-vi.html

    Saudações literárias

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  11. Olinda, que FABULOSA postagem!!!
    O poema, as fotos, a voz do saudoso Mário Viegas: TUDO PERFEITO!
    "Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
    Grande Fernando Pessoa!

    Obrigada, amiga. O teu "Xaile de Seda" é um miminho.
    Beijo e bom fim-de-semana.

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  12. Um belo poema de Álvaro de Campos onde ele, segundo o que interpreto descreve emversos as variadas sensações que nos entram alma adentro nos diferentes momentos do nosso dia. Fazemos todos estes questionamentos, sentimo-nos umas vezes poderosos, outras como se " nada " fossemos . Assim ele também se sentia, diferente pessoa a cada dia, a cada momento, perante esta ou aquela situação e por isso escolheu um nome para cada uma das
    suas caracteristicas. Usamos um nome só, mas nunca somos a mesma pessoa. Beijinhos, Olinda e parabéns pela escolha. Gostei muito.
    Emilia

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  13. Não me dou nada bem com a personalidade dos heterónimos
    que FPessoa criou... nenhum me convence.
    Admiro-os pela criatividade e pela habilidade literária
    do autor, mas apenas por isso...
    Abraço grande, Olinda.
    ~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~

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  14. Álvaro de Campos/Pessoa, sempre ele nos seus Poemas, sempre uma identidade intermutável com o momento da Vida. Mário Viegas "diz" muito bem o sentido e o sentimento das palavras.
    Bela escolha, Olinda.


    Beijo
    SOL

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  15. Uma excelente escolha que ficou perfeita com o intercalar das fotos.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria de
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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