Se eu soubesse a palavra,
a que subjaz aos milhões das que já disse,
a que às vezes se me anuncia num súbito silêncio interior,
a que se inscreve entre as estrelas contempladas pela noite,
a que estremece no fundo de uma angústia sem razão,
a que sinto na presença oblíqua de alguém que não está,
a que assoma ao olhar de uma criança que pela primeira vez interrogou,
a que inaudível se entreouve numa praia deserta no começo do Outono,
a que está antes de uma grande Lua nascer,
a que está atrás de uma porta entreaberta onde não há ninguém,
a que está no olhar de um cão que nos fita a compreender,
a que está numa erva de um caminho onde ninguém passa,
a que está num astro morto onde ninguém foi,
a que está numa pedra quando a olho a sós,
a que está numa cisterna quando me debruço à sua borda,
a que está numa manhã quando ainda nem as aves acordaram,
a que está entre as palavras e não foi nunca uma palavra,
a que está no último olhar de um moribundo, e a vida e o que nela foi fica a uma distância infinita,
a que está no olhar de um cego quando nos fita e resvala por nós,
-se eu soubesse a palavra,
a única, a última,
e pudesse depois ficar em silêncio para sempre…
(1916-1996)
Ainda e sempre a Palavra, ferramenta indispensável à comunicação e quando ela nos falha tudo se desmorona. Procurar a Palavra certa com o mesmo afã com que Diógenes de Sinope procurava um homem honesto, virtuoso, com uma lanterna em plena luz do dia...
Não sei se Vergílio Ferreira a terá encontrado.
Contudo, registo aqui o seu desideratum, o qual chega até nós
através deste belo poema.
Vergílio António Ferreira, foi um escritor e professor português. A sua vasta obra, geralmente dividida em ficção (romance, conto), ensaio e diário, costuma ser agrupada em dois períodos literários: o Neo-Realismo e o Existencialismo. Considera-se que Mudança é a obra que marca a transição entre os dois períodos
.O seu nome continua actualmente associado à literatura através da atribuição do Prémio Vergílio Ferreira. Em 1992, foi galardoado com o Prémio Camões. Veja mais, aqui
Nota:
Veja, aqui, texto sobre a obra Mudança.
(Mudança de Vergílio Ferreira: a Guinada Subjectiva,
de Madalena Vaz Pinto)
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Poema - aqui
video - aqui