sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A União Europeia, o Brexit e nós...

Vinte e três horas, hora de Greenwich, também hora nossa, e meia-noite em Bruxelas. É quando o Reino Unido sai da União Europeia. Um parto muito difícil que nós, cidadãos europeus, acompanhámos perplexos perante a ausência de visão, de diálogo, de tacto. Como não estar prevista a saída de um membro de uma associação de forma lisa e escorreita? Tratar-se-ia de uma prisão? Depois desta saída é bom que legisladores e quem de direito se debrucem sobre a necessidade de se criarem estruturas de modo a permitir que os estados-membros que queiram sair saiam sem tanto stress.

E agora? Estarão acautelados os interesses dos cidadãos imigrantes que se encontram no Reino Unido e de cidadãos seus nos restantes 27 países da União? É bom que tenham pensado em tudo, pois más consequências por incúria já cansam.

Tivemos aqui no Xaile de Seda momentos de empolgamento em relação à União Europeia, instituída em 1993, pelo Tratado de Maastricht, indo buscar as suas origens ao pós-guerra, na luz que surgia da boa vontade de homens que pretendiam reconstruir a Europa. Começa com a criação, em 1951, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e da Comunidade Económica Europeia, 1957, que reúnem à volta dos mesmos interesses a chamada Europa dos seis, Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. A partir de então sempre a crescer em tratados, em instituições, em legislação, em adesões.

Depois o marasmo, na minha óptica. Na altura da crise económica, na acção da Troika, uma certa pusilanimidade. Se não existiu de facto essa fraqueza, o certo é que nos sentimos órfãos e desprotegidos perante a omnipotência dos mercados e decisões políticas draconianas.

Mas não quero alongar-me com este tema. Muitas análises, presumivelmente especializadas, estarão a ser feitas ou hão-de ser feitas.

Neste espaço, apenas quero registar o momento.

E esperar pelo que aí vem.


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Alguns posts aqui no Xaile
mais este e este e este, talvez


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Para lá das palavras - gestos e silêncios





Precisamos de silêncio. Ao ruído do mundo deverá suceder necessariamente um vazio, direccionado à percepção do que nos rodeia e no qual os nossos pensamentos terão, em princípio, lugar de destaque. Mas a verdade é que nem sempre é necessário ter pensamentos. Deixar-nos vogar e em simbiose fazermos parte do mundo também é preciso. 

E mesmo quando utilizamos palavras, há instantes que deverão ser preenchidos apenas pela ténue respiração de quem fala, dando a quem ouve espaço para assimilar o que lhe é comunicado. Façamos como na música que tem no silêncio um dos seus elementos-chave. Depois de breves momentos de pausa, as notas reaparecem e elevam-se com renovado fulgor. 


Como é óbvio, não se pretende dizer que deve ser sempre assim em todo o lado e em relação a toda a gente. 

Sabemos por demais que o silêncio absoluto ou demasiado longo, quando acontece, leva a maus resultados pessoais e profissionais, causando problemas insolúveis em alguns casos. 

Contudo, há silêncios e silêncios. Por vezes são pura arte. É o que acontece com a Mímica, conhecida de todos, que leva ao mais alto grau o silêncio, complementado por gestos que nos deixam entrever um mundo quase encantado, uma sequência, uma espécie de bailado, que seguimos com admiração e apreço.

Socorro-me de Claire Miquel, que nos diz isto:

Un art a renoncé à la parole pour glorifier le geste: le mime. Il s'agit en effet d'exprimer toutes sortes de sentiments, de raconter des histoires en n'employant que le langage du corps: postures, gestes, mimiques. Cette technique, qui remonte à l'Antiquité, exige de l'artiste une grande concentration, et bien sûr, une remarquable agilité, qui s'apparente à celle de la danse.* 

É comum dizer-se que um gesto é tão ou mais eloquente que mil palavras e, no caso da Mímica, é toda uma série de gestos que conta histórias de forma graciosa e compreensível. 

Noutro nível, também temos um mundo de quase-silêncio que é povoado de sons, esses, inteligíveis através da agilidade das mãos, presque artistique, permitindo que determinada comunidade possa comunicar-se e entender-se. Refiro-me à língua gestual uma das três línguas oficiais a par com a língua mirandesa e a língua portuguesa. 

De algumas das suas características trata o excerto que, a seguir, transcrevo:

Quando se utiliza a expressão "língua gestual", está a referir-se a língua materna/natural de uma comunidade de surdos: uma língua de produção manuo-motora e recepção visual, com vocabulário e organização próprios, que não deriva das línguas orais, nem pode ser considerada como sua representação, utilizada não apenas pelos surdos de cada comunidade mas, também, pelos ouvintes - seus parentes, intérpretes, alguns professores e outros.** 

E pensar que nós utilizadores da fala tal como a conhecemos e praticamos, tantas vezes nos passa ao lado essa realidade. Mesmo assim, precisamos de gestos, sejam eles simbólicos ou físicos. Gestos de amor, de boa vontade, de bem-querer. Gestos facilitadores de diálogo. Também os há de incompreensão e desarmonia que fecham todas as portas. 




No nosso quotidiano existe um sem-número de gestos físicos que, sem necessidade de palavras, nos fazem entender o que o outro quer dizer, indo da alegria à tristeza, da amizade e à falta dela, do humor e à sua ausência... Nesse aspecto somos bastante inventivos. 

Meus amigos, esta publicação vem completar uma outra que produzi em tempos...

Boa quarta-feira.


Abraços.


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*Claire Miquel - Gestes et postures - pg 123 (in Français 2 - Bien et vite)
**Maria Augusta Amaral, Amândio Coutinho, Maria Raquel Delgado Martins - Para uma gramática da Língua Gestual Portuguesa - pg37

1ª imagem - Língua gestual - Ensino ver aqui
2ª imagem - Marcel Marceau - Wiki
3ª imagem - Rafael Bordalo Pinheiro e Zé Povinho no metro do Aeroporto de Lisboa

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Amo-te Por Todas as Razões e Mais Uma

Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar. 

Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras. 

Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.

Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.

in: Ano Comum






Não é a primeira vez que trago excertos deste "Ano Comum", de Joaquim Pessoa, obra e autor que muito aprecio e nem vos sei dizer se não terei já publicado o presente texto. 

Em todo o caso, pareceu-me sumamente indicado para assinalar que daqui a 04 dias, mais precisamente a 01 de Fevereiro, darei início à Quinzena do Amor que é já uma tradição neste Xaile, ainda que arrisque a vulgarizar ainda mais a palavra tradição que é utilizada por tudo e por nada. 

Por isso, para quem costuma aparecer por aqui não é novidade nenhuma, sabendo-se que aguardo no espaço reservado aos comentários, Poemas de Amor vossos ou de autores da vossa preferência,- abarcando amor amor, amor aos pais, aos filhos, ao nosso semelhante - os quais serão religiosamente publicados. 

No ano passado publiquei uma série de cartas de amor de personalidades conhecidas da Literatura portuguesa e internacional. Desta vez, a par dos poemas que me trouxerdes, veremos o que da minha parte poderei trazer de novo.

Boa semana.


Abraço


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Texto: Citador
imagem: daqui

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

"Tout est bien" ?

Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e, como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte, aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o melhor possível.

Assim falava Mestre Pangloss, o maior filósofo da província, e por conseguinte de toda a terra, na sua demonstração de que não há causa sem efeito e que tudo está encadeado e que há uma razão suficiente para todos os acontecimentos.

Mas polémicas filosóficas à parte, hoje o Xaile de Seda quer rosas, meus amigos. Rosas e lírios, mais exactamente, ou mesmo quaisquer flores. E verão o porquê deste desejo, mais abaixo.



Para já, apresento-vos o outro Poema, versando o tema Rosas e Lírios, também atribuído a Álvaro de Campos, de que vos falei num post de há dias:
Dai-
Dai-me Rosas e Lírios

Dai-me flores, muitas flores
Quaisquer flores, logo que sejam muitas...
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas

Em me dardes muitas flores,
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores...
Sejam essas as flores que me deis...

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio,
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança

Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.

O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis e aparar lápis e gente que os apara à janela, é tão estranho!
É tão fantástico que estas coisas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dor de cabeça.

A flor caída no chão.
A flor murcha (rosa branca amarelecendo)
Caída no chão...
Qual é o sentido da vida?





E tudo isto porque o dito Xaile completa nove aninhos. Não é razão para festejos mas, pronto, gosto de assinalar a data. Quanto mais não seja para eu própria proceder a uma reflexão sobre a utilidade ou não da sua existência.




Grande abraço a todos os que me visitam.

Boa quarta-feira.


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-O título do post retirado de: aqui
  Texto de Rousseau
-Excerto - Candide ou l'optimisme
                   Voltaire
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Poema - daqui
s. d.
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).
  - 150.Álvaro de Campos?

Imagem: pixabay

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

O último adeus dum combatente

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que eu parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!


 (1926-2005)


Numa preciosa resenha sobre a Literatura Guineense, Filomena Embaló, de quem já falámos aqui no Xaile através da sua obra, "Tiara", coloca Vasco Cabral, António Baticã Ferreira e Amílcar Cabral no período compreendido entre 1945 e 1970 - período esse de produção poética a que deu a designação de "Poesia de Combate".

Sobre este autor, F. Embaló diz-nos:

Vasco Cabral é certamente o escritor desta geração com a maior produção poética e o poeta guineense que maior número de temas abordou. A sua pluma passa do oprimido à luta, da miséria à esperança, do amor à paz e à criança.... Inicialmente com uma abordagem universalista, a sua obra se orienta, a partir dos anos 1960 para a realidade guineense. Em 1981, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado “A luta é a minha primavera”, obra que reúne 23 anos de criação poética entre 1951 e 1974. Esta obra foi ulteriormente publicada pela União Latina numa versão trilingue português, francês e romeno.

Também deixo alguns dados biográficos referentes a poeta guineense:

Estudou em Portugal onde se formou em Ciências Económicas e Financeiras pela Universidade Técnica de Lisboa e foi militante do MUD juvenil, movimento unitário de oposição à ditadura fascista, fortemente influenciado pelo PCP. Foi preso político no Aljube e em Caxias. Na guerra contra o império colonial, Vasco Cabral tornou-se um dos principais dirigentes do Partido Africano pela Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC) (...)
Foi companheiro de armas de Amilcar Cabral, líder da luta pela independência da Guiné Bissau e de Cabo Verde (...) aqui




Da obra referida, "A luta é a minha Primavera", trarei, oportunamente, mais alguns poemas. Aliás, este Xaile de Seda vai ocupar-se um pouco da Literatura Guineense nos próximos dias, com uma ligeira interrupção no dia 22.

Bom fim de semana, meus amigos.


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Poema: daqui
A luta é a minha primavera, 1981
Em: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

23. ESPERANÇA

            I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
17-6-1929

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Esta
mpa, 1993. - 106

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Este poema, lindíssimo, "Dá-me lírios, lírios/E rosas também", foi-me indicado por pessoa amiga. E fui à procura dele. Mas, surpresa das surpresas para mim, tem uma segunda parte, que também transcrevo, numa toada completamente diferente mas não menos belo. (Um dia hei-de folhear o livro onde se encontra inserido).

E assim, sem mais, termina com "Boa noite na Austrália!". Ou teria alguma razão de ser no momento em que o poeta escrevera o poema?

Na actualidade, na Austrália pessoas e animais atravessam momentos aflitivos, martirizados por incêndios sem fim à vista. E a terra privada do seu húmus, secada até às entranhas. 

Se a esperança é a ultima a morrer...parece que já não restará muito mais. 


Boa segunda-feira, meus amigos


Abraços.





Versão da bela canção de Roberto de Carlos, por
Raquel Tavares, fadista, que decidiu interromper ou pôr fim à sua carreira musical.
Desejo que ela encontre o caminho que deseja percorrer e por que tanto anseia


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O título do post - 23.Esperança - Tal como aparece na fonte
Subtítulo - POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA - daqui

O interessante é que há outro poema, provavelmente também de
Álvaro de Campos, com este título: DAI-ME ROSAS e LÍRIOS,
Noutra ocasião, trá-lo-ei aqui para o Xaile..
Imagem - pixabay

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Quando se fala do livro de Manuel Veiga: "Do Amor e da Guerra",



A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita solidão daquele calvário, as chagas nos pés e todas as mazelas e todos os gritos se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de absoluto abandono.

E a interpelação:


Que sabes tu de África, Maria Adelaide? Filha de África te dizias: que sabes desses dias... Não, não te recrimino, nem - longe de mim - me arrogo em tua "consciência moral". Sei bem que cada um de nós transporta, inocentes, a consequência dos nossos acasos e da vulnerabilidade das nossas vidas. Nem tu escolheste África como berço, nem eu demandei África, como destino de guerra.

Figura ímpar, sempre presente e dominante no romance, imprescindível. Ela é chamada, é evocada, é desejada, nessa viagem, forçada, a África: Desejo que venhas Maria Adelaide, partilhar esta paleta indistinta de sentimentos - Maria Adelaide com quem o narrador conversa, em itálicos belíssimos, comoventes, em que este se mostra a nu, versando sobre momentos comuns vividos no passado, discutindo a apresentação dos personagens, da natureza da história e da forma como decorre, história circular segundo ela, por vezes irónica, por vezes sobranceira.

E convocados são os personagens, mortos-vivos na trama que se desenrola ante os nossos olhos, cada um deles com o nome que lhes é atribuído, com as suas características próprias, essas repetidas ao longo do livro, marcadamente, de modo a não as esquecermos e a ficarem vincadas na nossa memória.

E o Valentim será o primeiro de todos nesse desfilar, sem direito a hino, nem a inspirado poema, nem a Cruz de Guerra, aquele que já não acenderá o cigarro no cigarro do Alferes, ou vice-versa, o Alferes-personagem que atravessará toda a história, apenas porque foi nomeado e que ali estará em todos os momentos e que dará o toque da sua personalidade à narração. Numa atrevida e desejada transmutação nossa, sentimo-lo o protagonista mas de forma tão subtil que até pensamos se não seremos nós que lhe concedemos esse papel.

Este autor que se funde com a própria História porque ela é dinâmica e autónoma, porque ela acontece sem lhe pedir licença e para a qual fora levado sem apelo nem agravo, "sujeito fora da estória", este autor, dizíamos, encontra espaço para tocar na ferida e expor os horrores da guerra in loco, das circunstâncias, do quotidiano, num discurso sem tempo nem lugar porque ele assim o decide.

E ali inseridas, encontramos reflexões sobre os povos em presença, sobre o seu passado, alianças realizadas, produto da implantação e contingências do sistema colonial. E num repente ou talvez não, um baque, um pensamento, expressado quase em surdina no seu íntimo ou a alguém próximo, e se o meu o lugar não é aqui mas do outro lado da História?

Quanto à realidade nacional, vemos no Uíge o quadro vivo de um País perplexo perante uma inevitabilidade incompreensível: "e eu subindo o escaler do Uíge, milhares de homens a bordo, debruçados na amurada, prolongando o choro das mães, o beijo das mulheres e noivas, a serena revolta dos pais e dos amigos, o fadário de um Povo acorrentado...


Mas antes, muito antes, num tempo fora do tempo, temos o menino de caracóis castanhos que sob o ruído da metralha procura a fuga redentora, inconsciente, provinda do fundo do medo, físico e viscoso, para os dias primaveris da infância e o cálido regaço materno, como que ajustando contas, em desespero, no deve e haver da vida. E foi-lhe garantido que o que nos está destinado nos cairá nos braços. Até a morte!

Destinar o fim a dar aos personagens, é preciso, é de justiça e vontade do autor e dos próprios, nessa farsa da vida, em que cada um se acotovela no seu afã de encontrar o melhor lugar na barca da glória, nave dos loucos atravancada nas sete voltas do inferno de Dante, expurgando a viscosidade que se adere em nós como segunda pele. 

Porque "A travessia é mais além...". A estrada de damasco não acontecera ainda. As miragens, o fel, a amargura dos dias apodrecidos ainda exalam o mau cheiro que envenena os homens. E os escolhos e abrolhos se amontoam:

São de pedra os caminhos de Damasco
E de pedra são as rotas e as distâncias.
E é de areia o rosto das miragens
são de fel os dias. E de amargura
A água dos rochedos.

São de pedra os trilhos.
E as bocas são a arder
A insónia de serpentes
E labaredas negras...

Soberbos, porém, os dias
Assim cativos de pedras
E de medos.

Nessa travessia ainda nos encontramos, nesta quase peregrinação a um dos momentos mais dolorosos da nossa História, em que uma geração sacrificada ainda procura, a maior parte, o seu próprio caminho. 

Contudo, não podemos deixar de referir o toque de esperança que aparece no final do livro:

Acordou o narrador. Sobre a cidade, uma manhã de sol de primavera. Era um "dia claro e limpo"! Floriam cravos vermelhos no cano das espingardas.




APENAS O LEITOR SALVA O TEXTO, EM SUA GLÓRIA E COLAPSO.

Isto nos diz o autor, que autor não é, mas UM PONTO NEUTRO, uma emergência, ou porventura, um cruzamento de possibilidades por onde perpassam os filamentos de uma trama, que não sabe bem como encenar-se.

E nós, leitores, alcandorados a esse patamar de excelência, temos o prazer de vos apresentar aqui, neste humilde Xaile de Seda

MANUEL VEIGA e o seu romance, "Do Amor e da Guerra - Fragmentos", livro de leitura obrigatória, diríamos. 

E é assim quando se fala desse livro
As palavras ficam presas na nossa emoção 
e no nosso reconhecimento a este grande escritor.

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Blog do autor: Relógio de Pêndulo

Textos transcritos e citações - in Do Amor e da Guerra - Manuel Veiga 
pags 13, 20, 21, 23, 24, 26, 28,245
Poema - in "Perfil dos Dias"-  Manuel Veiga- Pag 82

Video: Vangelis - Filme 1492, Conquest of Paradise - Colombo alcança o continente americano
em 12/10/1492

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Não sei quantas almas tenho




Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: <<Fui eu?>>
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa
   (1888-1935)



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Poema: daqui
Imagem: daqui