A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita solidão daquele calvário, as chagas nos pés e todas as mazelas e todos os gritos se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de absoluto abandono.
E a interpelação:
Que sabes tu de África, Maria Adelaide? Filha de África te dizias: que sabes desses dias... Não, não te recrimino, nem - longe de mim - me arrogo em tua "consciência moral". Sei bem que cada um de nós transporta, inocentes, a consequência dos nossos acasos e da vulnerabilidade das nossas vidas. Nem tu escolheste África como berço, nem eu demandei África, como destino de guerra.
Figura ímpar, sempre presente e dominante no romance, imprescindível. Ela é chamada, é evocada, é desejada, nessa viagem, forçada, a África: Desejo que venhas Maria Adelaide, partilhar esta paleta indistinta de sentimentos - Maria Adelaide com quem o narrador conversa, em itálicos belíssimos, comoventes, em que este se mostra a nu, versando sobre momentos comuns vividos no passado, discutindo a apresentação dos personagens, da natureza da história e da forma como decorre, história circular segundo ela, por vezes irónica, por vezes sobranceira.
E convocados são os personagens, mortos-vivos na trama que se desenrola ante os nossos olhos, cada um deles com o nome que lhes é atribuído, com as suas características próprias, essas repetidas ao longo do livro, marcadamente, de modo a não as esquecermos e a ficarem vincadas na nossa memória.
E o Valentim será o primeiro de todos nesse desfilar, sem direito a hino, nem a inspirado poema, nem a Cruz de Guerra, aquele que já não acenderá o cigarro no cigarro do Alferes, ou vice-versa, o Alferes-personagem que atravessará toda a história, apenas porque foi nomeado e que ali estará em todos os momentos e que dará o toque da sua personalidade à narração. Numa atrevida e desejada transmutação nossa, sentimo-lo o protagonista mas de forma tão subtil que até pensamos se não seremos nós que lhe concedemos esse papel.
Este autor que se funde com a própria História porque ela é dinâmica e autónoma, porque ela acontece sem lhe pedir licença e para a qual fora levado sem apelo nem agravo, "sujeito fora da estória", este autor, dizíamos, encontra espaço para tocar na ferida e expor os horrores da guerra in loco, das circunstâncias, do quotidiano, num discurso sem tempo nem lugar porque ele assim o decide.
E ali inseridas, encontramos reflexões sobre os povos em presença, sobre o seu passado, alianças realizadas, produto da implantação e contingências do sistema colonial. E num repente ou talvez não, um baque, um pensamento, expressado quase em surdina no seu íntimo ou a alguém próximo, e se o meu o lugar não é aqui mas do outro lado da História?
Quanto à realidade nacional, vemos no Uíge o quadro vivo de um País perplexo perante uma inevitabilidade incompreensível: "e eu subindo o escaler do Uíge, milhares de homens a bordo, debruçados na amurada, prolongando o choro das mães, o beijo das mulheres e noivas, a serena revolta dos pais e dos amigos, o fadário de um Povo acorrentado...
Mas antes, muito antes, num tempo fora do tempo, temos o menino de caracóis castanhos que sob o ruído da metralha procura a fuga redentora, inconsciente, provinda do fundo do medo, físico e viscoso, para os dias primaveris da infância e o cálido regaço materno, como que ajustando contas, em desespero, no deve e haver da vida. E foi-lhe garantido que o que nos está destinado nos cairá nos braços. Até a morte!
Destinar o fim a dar aos personagens, é preciso, é de justiça e vontade do autor e dos próprios, nessa farsa da vida, em que cada um se acotovela no seu afã de encontrar o melhor lugar na barca da glória, nave dos loucos atravancada nas sete voltas do inferno de Dante, expurgando a viscosidade que se adere em nós como segunda pele.
Porque "A travessia é mais além...". A estrada de damasco não acontecera ainda. As miragens, o fel, a amargura dos dias apodrecidos ainda exalam o mau cheiro que envenena os homens. E os escolhos e abrolhos se amontoam:
São de pedra os caminhos de Damasco
E de pedra são as rotas e as distâncias.
E é de areia o rosto das miragens
E são de fel os dias. E de amargura
A água dos rochedos.
São de pedra os trilhos.
E as bocas são a arder
A insónia de serpentes
E labaredas negras...
Soberbos, porém, os dias
Assim cativos de pedras
E de medos.
Nessa travessia ainda nos encontramos, nesta quase peregrinação a um dos momentos mais dolorosos da nossa História, em que uma geração sacrificada ainda procura, a maior parte, o seu próprio caminho.
Contudo, não podemos deixar de referir o toque de esperança que aparece no final do livro:
Acordou o narrador. Sobre a cidade, uma manhã de sol de primavera. Era um "dia claro e limpo"! Floriam cravos vermelhos no cano das espingardas.
APENAS O LEITOR SALVA O TEXTO, EM SUA GLÓRIA E COLAPSO.
Isto nos diz o autor, que autor não é, mas UM PONTO NEUTRO, uma emergência, ou porventura, um cruzamento de possibilidades por onde perpassam os filamentos de uma trama, que não sabe bem como encenar-se.
E nós, leitores, alcandorados a esse patamar de excelência, temos o prazer de vos apresentar aqui, neste humilde Xaile de Seda,
MANUEL VEIGA e o seu romance, "Do Amor e da Guerra - Fragmentos", livro de leitura obrigatória, diríamos.
E é assim quando se fala desse livro.
As palavras ficam presas na nossa emoção
e no nosso reconhecimento a este grande escritor.
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Blog do autor: Relógio de Pêndulo
Textos transcritos e citações - in Do Amor e da Guerra - Manuel Veiga
pags 13, 20, 21, 23, 24, 26, 28,245
Poema - in "Perfil dos Dias"- Manuel Veiga- Pag 82
Video: Vangelis - Filme 1492, Conquest of Paradise - Colombo alcança o continente americano
em 12/10/1492