quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Para lá das palavras - gestos e silêncios





Precisamos de silêncio. Ao ruído do mundo deverá suceder necessariamente um vazio, direccionado à percepção do que nos rodeia e no qual os nossos pensamentos terão, em princípio, lugar de destaque. Mas a verdade é que nem sempre é necessário ter pensamentos. Deixar-nos vogar e em simbiose fazermos parte do mundo também é preciso. 

E mesmo quando utilizamos palavras, há instantes que deverão ser preenchidos apenas pela ténue respiração de quem fala, dando a quem ouve espaço para assimilar o que lhe é comunicado. Façamos como na música que tem no silêncio um dos seus elementos-chave. Depois de breves momentos de pausa, as notas reaparecem e elevam-se com renovado fulgor. 


Como é óbvio, não se pretende dizer que deve ser sempre assim em todo o lado e em relação a toda a gente. 

Sabemos por demais que o silêncio absoluto ou demasiado longo, quando acontece, leva a maus resultados pessoais e profissionais, causando problemas insolúveis em alguns casos. 

Contudo, há silêncios e silêncios. Por vezes são pura arte. É o que acontece com a Mímica, conhecida de todos, que leva ao mais alto grau o silêncio, complementado por gestos que nos deixam entrever um mundo quase encantado, uma sequência, uma espécie de bailado, que seguimos com admiração e apreço.

Socorro-me de Claire Miquel, que nos diz isto:

Un art a renoncé à la parole pour glorifier le geste: le mime. Il s'agit en effet d'exprimer toutes sortes de sentiments, de raconter des histoires en n'employant que le langage du corps: postures, gestes, mimiques. Cette technique, qui remonte à l'Antiquité, exige de l'artiste une grande concentration, et bien sûr, une remarquable agilité, qui s'apparente à celle de la danse.* 

É comum dizer-se que um gesto é tão ou mais eloquente que mil palavras e, no caso da Mímica, é toda uma série de gestos que conta histórias de forma graciosa e compreensível. 

Noutro nível, também temos um mundo de quase-silêncio que é povoado de sons, esses, inteligíveis através da agilidade das mãos, presque artistique, permitindo que determinada comunidade possa comunicar-se e entender-se. Refiro-me à língua gestual uma das três línguas oficiais a par com a língua mirandesa e a língua portuguesa. 

De algumas das suas características trata o excerto que, a seguir, transcrevo:

Quando se utiliza a expressão "língua gestual", está a referir-se a língua materna/natural de uma comunidade de surdos: uma língua de produção manuo-motora e recepção visual, com vocabulário e organização próprios, que não deriva das línguas orais, nem pode ser considerada como sua representação, utilizada não apenas pelos surdos de cada comunidade mas, também, pelos ouvintes - seus parentes, intérpretes, alguns professores e outros.** 

E pensar que nós utilizadores da fala tal como a conhecemos e praticamos, tantas vezes nos passa ao lado essa realidade. Mesmo assim, precisamos de gestos, sejam eles simbólicos ou físicos. Gestos de amor, de boa vontade, de bem-querer. Gestos facilitadores de diálogo. Também os há de incompreensão e desarmonia que fecham todas as portas. 




No nosso quotidiano existe um sem-número de gestos físicos que, sem necessidade de palavras, nos fazem entender o que o outro quer dizer, indo da alegria à tristeza, da amizade e à falta dela, do humor e à sua ausência... Nesse aspecto somos bastante inventivos. 

Meus amigos, esta publicação vem completar uma outra que produzi em tempos...

Boa quarta-feira.


Abraços.


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*Claire Miquel - Gestes et postures - pg 123 (in Français 2 - Bien et vite)
**Maria Augusta Amaral, Amândio Coutinho, Maria Raquel Delgado Martins - Para uma gramática da Língua Gestual Portuguesa - pg37

1ª imagem - Língua gestual - Ensino ver aqui
2ª imagem - Marcel Marceau - Wiki
3ª imagem - Rafael Bordalo Pinheiro e Zé Povinho no metro do Aeroporto de Lisboa

21 comentários:

  1. Eu adoro o silêncio. É neles que me encontro comigo mesma. E tem razão há gestos que não precisam de palavras.
    Abraço

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    1. Olá, Elvira

      Gosto de silêncio quanto baste e de gestos de boa vontade que abram caminho ao diálogo.

      Bj

      Olinda

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  2. Uma dissertação sobre o silêncio que pode reforçar, o som/voz por palavras que também valem por “mil imagens”, depende das imagens e depende das palavras… as sua valem bastante…
    Nunca tinha pensado em tal, pelo menos a um nível tão profundo. A linguagem faz de nós o que somos e o ser humano teve necessidade de encontrar uma base comum.

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    1. É isso, Sam. Uma base comum para as diferentes línguas e linguagens de modo a nos entendermos. Os grupos que não conseguem utilizar a palavra como ferramenta de comunicação têm à sua disposição os gestos numa base científica. Muitas vezes pergunto-me por que razão não nos é ministrada essa valência nas escolas, a todos. Pelo menos alguns rudimentos, que cada um de nós desenvolveria de conformidade com os seus interesses. E o silêncio por vezes é preciso, na dose certa. :)

      Abraço

      Olinda

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  3. ... e assim... não te vejo como és
    mas como te vejo
    Bj

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    1. Isso vai mal, Mar Arável. :)
      Tem a certeza que este comentário era para este post
      e, já agora, para este blog?

      Abraço

      Olinda

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  4. Também se diz que o gesto é tudo!
    Vivo muito no meio do silêncio!

    Abraço

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    1. Sim, tem razão. Existe essa asserção e isso engloba os bons gestos e os gestos menos bons. Prefiro pensar nos gestos que nos tragam algum conforto e abram caminho à compreensão e harmonia.

      Quanto ao silêncio, se não é um silêncio desejado a solidão acabará por se impor, o que poderá nos tornar infelizes.

      Beijo

      Olinda

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  5. há silêncios tão eloquentes que fazem eco à distância.

    e gestos tão carregados de significado que "falam",
    mesmo que apenas esboçados.

    e palavras tão certeiras que explodem como dinamite.

    gostei muito, Olinda, da publicação e da subtil orquestração
    e ilustração dos temas.

    o Zé Povinho e o Bordalo Pinheiro muito oportunos e em excelente forma!

    abraço, minha amiga

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    1. Caro Manuel Veiga

      Hipérboles muito bem aplicadas, que tanto servem para definir com intensidade, no sentido positivo, os três itens de que trata o texto como também para mostrar que no exagero do silêncio, dos gestos e das palavras não residirá a virtude.

      De facto, Rafael Bordalo Pinheiro com o seu Zé Povinho conseguiu eternizar um dos gestos mais eloquentes de que há memória e que todos nós percebemos muito bem e que nos faz sorrir.

      Abraço

      Olinda

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  6. Boa noite de muita paz, querida amiga Olinda!
    Eu amo o silêncio... Mas preciso de ver gente, mesmo que não seja para conversar.
    Há momentos e momentos, amiga!
    Tenho tempo de calar e produzir silenciosamente (silêncio fecundo).
    Tenho tempo de falar quando for para edificar.
    Não falo o dia todo nem me calo por inteiro.
    Gestos dizem muito e falam por si, eu creio.
    Penso que devamos nos expressar de alguma forma... Somos seres comunicativos na essência.
    Acredito também, querida, que precisamos do silêncio para maturar nosso falar.
    Tenha dias abençoados e felizes!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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    1. Minha amiga Rosélia

      Sim, há momentos e momentos. Aqueles em que podemos embrenhar-nos
      no silêncio e outros em que nos comunicamos uns com os outros como
      seres gregários que somos. Qualquer que seja a forma, o importante
      é que nos entendamos e digamos o que houver para dizer.

      Obrigada pelo seu comentário, querida Rosélia.

      Beijinhos

      Olinda


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  7. Bom dia, minha Amiga Olinda!
    Como escreveu o poeta Albano Martins "Tudo vem do silêncio, tudo volta ao silêncio. Interrogamos o Universo e é o silêncio que nos responde…"
    Também podemos habitar o silêncio com todas as memórias, com todas as dádivas, com todos os gritos com todas as sedes, com todas as águas… Gostei do seu texto tão inspirador.
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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    1. Querida Graça

      Fantástica esta citação de Albano Martins, sobre o silêncio, poeta que "visitou" este Xaile durante uma temporada, em especial com a sua Poesia Raiku, juntamente com outros poetas que cultuam, também, esse género literário.

      E as suas próprias palavras, Graça, um poema quase. Sim, podemos habitar o silêncio com todas as ânsias que a nossa alma guarda e almeja, de alguma forma, expressar.

      Beijinhos

      Olinda

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  8. Adoro o silêncio na calada da noite perante um bom livro.
    E um abraço bem forte sem qualquer palavra reflecte - se numa dádiva.
    Um gesto de Adeus.
    Megy Maia

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    1. Olá, Megy

      Seja bem-vinda.
      Ler um bom livro e entrarmos na pele dos personagens
      e na própria história é um dos momentos em que o
      silêncio terá de estar presente.
      O abraço fala por si só, é verdade.
      Mas o do Adeus, embora exista e em alguns momentos
      quase inevitável, traz-nos um sabor amargo, não é verdade?
      Enfim, é a vida...

      Bj

      Olinda

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  9. Querida Olinda, e foi com uma respiração pausada, ora mais demorada, ora mais curta que li seu belo texto, deixando-me enlevar pelo delicioso som do silêncio, tão necessário em alguns momentos, como bem o dizes.
    Gestos e silêncios, são a harmonia de uma mesma nota.

    Um beijo e parabéns, pelo texto tão necessário, nesses tempos barulhentos!

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    1. "Canto da Boca"
      Minha Amiga!

      Tão bom ver-te aqui no Xaile!
      És sempre lembrada, tu sabes, especialmente pelo grande apoio que me deste em relação à Literatura Brasileira.

      E nos "gestos e silêncios, harmonia de uma nota só" nos edificamos. Talvez encontremos neles a 15ª nota e fiquemos a conhecer o seu sonido.

      Beijinhos

      Olinda

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  10. Preciso do silêncio como do ar que respiro. Sabemos que é nele que o cérebro se organiza. Também é verdade que o silêncio é uma forma extraordinária de comunicar. E que saber ouvir é uma arte. A analogia com a música agradou-me imenso. A linguagem gestual é profundamente humana e eloquente. E que maravilha existir uma língua específica para surdos.
    Boa reflexão, querida Olinda

    Beijos.

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  11. Sim, sim e sim, querida Teresa. Totalmente de acordo.
    O silêncio, espaço para nos reorganizarmos mentalmente,
    procurando consolidar ideias, novas formas de estar connosco
    e com os outros. E, enquanto ouvimos o outro, dar-se-á a
    transformação requerida pela sagesse e compreensão de outra
    visão da vida.

    Adorei, minha amiga.

    Beijinhos

    Olinda

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