quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Olhem, o sangue deles é exactamente da mesma cor!

Mas o negro sacudiu a cabeça e recuou um passo. Vendo-o retrair-se o português, para voltar a estabelecer a confiança, começou a cantar e a dançar. O outro, com grandes saltos, cantos e risos, seguiu o seu exemplo. Em frente um do outro bailaram algum tempo. Mas no ardor do baile e da mímica Pero Dias, ergueu no ar a sua espada, que faiscou ao sol. O brilho assustou o nativo, que deu um pulo para trás e estremeceu. Pero fez um gesto para o sossegar. Mas o outro começou a fugir, e o navegador precipitou-se no seu encalce e agarrou-o por um braço. Vendo-se preso, o negro principiou a debater-se, primeiro com susto, depois com fúria. Com gritos roucos e sílabas guturais respondia às palavras e aos gestos que o tentavam apaziguar. Ao longe, no mar, os companheiros de Pero Dias avistaram a luta e principiaram a remar para a praia.

O negro viu-os aproximarem-se, julgou-se cercado e perdido e apontou a sua lança. Pero Dias com a espada tentou aparar o golpe mas ambos caíram trespassados. Os portugueses saltaram do batel e correram para os corpos estendidos. Do peito do negro e do branco corriam dois fios de sangue.

Olhem - disse um moço -, o sangue deles é exactamente da mesma cor.

De bordo veio o capitão com mais gente e todos durante uma hora choraram o triste combate. *

SOPHIA, também contista, autora de livros infantis...



Mãe, de que cor é o sangue deles? - perguntou-me a pequenina, curiosa nos seus quatro aninhos, apontando para dois jovens negros, entregues à conversa, no seu idioma natal. Estávamos completamente comprimidas na parte da frente do autocarro, de tão cheio, e, para a proteger dos apertos das pessoas que iam entrando tinha-a colocado na parte destinada aos volumes, que estava livre (não sei se os autocarros, actualmente, ainda têm essa parte). Procurando não elevar a voz respondi-lhe: É como o de toda a gente. Ela, para ter a certeza: Vermelho?

Dela herdei  "O Cavaleiro da Dinamarca", cuja leitura lhe fora indicada na escola. Hoje** peguei nele e abri-o precisamente na página que acabo de transcrever, donde sobressai a importância dos usos e costumes para cada um de nós, do nosso espaço vital, da realidade nossa e a do outro, independentemente do nosso aspecto exterior. Também relevante o facto de que nem tudo poderá ser percebido correctamente se não dominarmos a mesma língua ou linguagem e, mesmo tendo essa raiz, o que dizemos poderá não chegar ao nosso interlocutor com a clareza desejada.

Daí que, seja em que contexto for, a palavra bem falada, bem escrita, bem explicada, bem transmitida, é fundamental. Há que distinguir dessa abordagem clean a linguagem poética, a qual convoca universos diferentes dos do nosso quotidiano. E ainda que nos transmita realidades com as quais nos identificamos, ela encontra-se num nível em que são permitidas figuras de estilo e estas poderão conduzir-nos a uma interpretação mais de conformidade com as nossas próprias vivências.

E os gestos? Temos um ditado que diz: O gesto é tudo! Mas nem sempre. Vimos a sua trágica insuficiência bem representada no texto acima...

Por outro lado, há o gesto em sentido figurado, estilizado, o de boa vontade, o de boa-fé, que poderá desimpedir um mundo imenso de desconfianças e mal-entendidos, tanto socialmente como no complicado mundo da política, sem esquecer a diplomacia. Um bom diplomata pode evitar uma guerra. Importância nem sempre conhecida ou reconhecida.


Voltaremos aos gestos e a outras línguas e linguagens, 
numa dinâmica surpreendente, 
mas que são do conhecimento de todos nós. 
Brevemente. 






Eugénio Tavares, Sãozinha Fonseca, 
a Ilha da Brava



Boa quinta-feira, meus amigos.

Abraço

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** Há três dias.
*Excerto:
Sophia de Mello Breyner Andresen
in: O Cavaleiro da Dinamarca - páginas 55/56

Obra incluída no Plano Nacional de Leitura
Sinopse
No regresso de uma longa peregrinação à Palestina, o Cavaleiro tem apenas um desejo: voltar a casa a tempo de celebrar o Natal com a sua família. Nessa viagem, maravilha-se com as cidades de Veneza e Florença, e ouve histórias espantosas sobre pintores, poetas e navegadores. São muitas as dificuldades com que se depara, mas uma força inabalável parece ajudá-lo a passar essa noite tão especial com aqueles que mais ama…


Leia, em texto integral:
O cavaleiro da Dinamarca - aqui

8 comentários:

  1. Uma obra que entrou nas escolas portuguesas ainda antes do 25 de Abril!
    E continua a ser recomendada a sua leitura e análise cuidada!

    Abraço

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  2. Boa noite de paz interior, querida amiga Olinda!
    Vir aqui é um banho cultural que nos incita a voltar para mais nos enriquecermos. Farei bem assim e sempre vou repassando seus posts.
    Imagem bela e rostos coloridos de bom caráter é o que conta, na realidade.
    O sangue tem o mesmo tom vermelho em todas as raças. Ainda bem que seja assim!
    Muito obrigada pelo seu carinho por lá, amiga.
    Tenha dias felizes e abençoados!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  3. Lindíssima publicação! Gostei muito de ler.
    Somos todos iguais não só no sangue, mas em dignidade. Assim pudesse ser sempre reconhecido.
    E sim, "seja em que contexto flor, a palavra bem falada, bem escrita, bem explicada, bem transmitida, é fundamental." Mas, muitas vezes pode ser fonte de equívocos quando os interlocutores não estão, nem se põem, ao mesmo nível.

    Bom fim-de-semana!
    Beijinhos.

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  4. Querida Olinda, tenho passado por aqui, mas não tenho comentado; hoje, porém não resisti a deixar algumas palavrinhas de tão interessante que é este post; não é que os outros não o sejam, mas as dificuldades com a mão esquerda ainda são algumas. Conheço pouco da obra de Sofia, infelizmente, mas, graças aos blogues amigos, estou a conhece-la melhor. Sabes, quando há muitos anos já fui visitar o museu da lingua portuguesa portuguesa a S, Paulo, na antiga estação da Luz, havia uma frase da Sofia que dizia " gosto do português do Brasil; eles separam bem as sílabas....co-quei-ro sabe mais a coco " Isto levou-me a dar razão aos brasileiros quando dizem que nós falamos muito depressa e por isso não nos entende, Na realidade é isso que acontece.; nós não separamos as silabas e por isso parece que " comemos parte da palavra. Agora, quando falo com os meus amigos brasileiros e eles me perguntam, " o quê? " , eu repito o que disse, separando bem as silabas e logo eles percebem. Amiga, é triste que ainda haja pessoas que pensem que há sangues diferentes, mas, infelizmente ainda acontece. Quanto aos gestos, sim, fico à espera do teu próximo post sobre eles e, entretanto, não esqueçamos que os pequenos gestos podem fazer milagres na vida das pessoas e que as palavras tanto podem ser maravilhosas, como perigosissimas; há que ter muito cuidado na maneira como as usamos.Obrigada pelo excelente post e não perderei o próximo, pois, além destes gestos , das acções, das atitudes que temos no nosso dia a dia em relação a nós e aos outros, dos outros pouco sei. Minha Amiga, espero que esteja tudo a correr bem aí em casa, com saúde e alegria. Um beijinho muito especial e boa noite
    Emília

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  5. Olá, Olinda!

    O sangue é da mesma cor e, como canta Chico César, a alma não tem cor. Há muito a nos assemelhar e nos unificar como seres humanos, mas é importante, também, reconhecermos nossas diferenças, porque ao contrário do que muitos dizem na tentativa de nos homogeneizar, não somos, de fato, iguais, e exatamente porque esperam que sejamos todos iguais é que existe tanto preconceito no mundo, porque não aceitam e nem respeitam as diferenças, a diversidade, seja de cor, de orientação sexual, do que for. Bonita postagem, um abraço!

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  6. Não conhecia. Há muitos anos que leio Sophia, mas sempre e apenas poemas.
    Obrigada pela partilha
    Abraço e bom fim de semana

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  7. "Somos o que somos", não é verdade, amiga Olinda?
    Isto é, "Todos Diferentes e Todos Iguais", pelo menos, no que se refere à cor do sangue;

    e à composição da Lágrima, como nos diz António Gedeão (água e cloreto de sódio)

    excelente(s) texto(s). de grande actualidade

    abraço

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  8. Dois pedaços de História com História. Os mitos são mais que muitos.

    O sangue, seiva encarnada,
    É como a Alma da gente.
    A Vida é suportada
    Enquanto nos for corrente.

    Seja branca ou amarela
    A pele que nos encobre
    O sangue coisa mais bela
    É o elemento nobre.

    Ilha Brava, sugere, completa e delicia.
    Bom trabalho.Parabéns.


    Beijo
    SOL

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