sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Minha Lília, minha amada


A mãe, que em berço dourado
Pôs teu corpo cristalino,
É sup'rior ao Destino,
Depois de te haver criado.
Quando Amor, o Nume alado,
Tua infância acalentou,
Quando os teus dias fadou,
Minha Lília, minha amada,
A mãe ficou encantada,
A Natureza pasmou.

Deve dar breve cuidado,
Motivar grande atenção,
A um Deus a criação,
Depois de te haver criado.
Deve de ser refinado
O engenho que ele mostrar
Desde o ponto em que criar;
Cuide nisto a omnipotência,
Porque, ao ver a sua essência,
A Natureza pasmou.

Ao mesmo Céu não é dado
(Bem que tanto poder goza)
Criar coisa tão formosa
Depois de te haver criado.
Naquele instante dourado,
Em que teus dotes formou,
Apenas os completou,
Arengando-lhe o Destino,
Em um êxtase divino
A Natureza pasmou.

O Céu nos tem outorgado
Quanto outorgar-nos podia;
O Céu que mais nos daria
Depois de te haver criado?
Ninfa, das Graças traslado,
Ninfa, de que escravo sou,
Jove em ti se enfeitiçou,
Cheio de espanto e de gosto,
E absorta no teu composto
A Natureza pasmou.

O teu rosto é adornado
Dos prodígios da beleza;
Foi um deus a Natureza
Depois de te haver criado.
Pôs em teu rosto adoçado
O que nunca o Céu formou;
Ela a Jove envergonhou
Nesse deleitoso espanto,
E de ter subido a tanto
A Natureza pasmou.

Todo o concílio sagrado
Do almo Olimpo brilhador,
Subiu a grau sup'rior
Depois de te haver criado.
Da meiga Vénus ao lado
O teu ente a nós baixou,
Ente que Jove apurou,
Ente de todos diverso;
Assombrou-se o Universo,
A Natureza pasmou.


in 'Depois de te haver criado, 
A Natureza pasmou. (Décimas sobre dísticos)'




Ele é Manuel Maria Barbosa L'Hedois du Bocage, o tal que se descreve como sendo:

"Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
..."

e outras coisas mais.

Nasceu em Setúbal, em 15 de Setembro de 1765, pelo que é conhecido por Elmano Sadino, pseudónimo, e é considerado, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX. Leia mais aqui

Mas também Bocage é conhecido pela sua irreverência, pela poesia satírica, que declamava nos bares, nas ruas. É o poeta dos palavrões, da palavra crua sem receios. Fala de tudo e de todos, sem mansidão, criticando de uma forma aberta a sua época. Como se diz aqui

O título do poema não é "Minha Lídia, minha amada". Este é o título do post. Gostei de pôr a tónica nessa Lília, tendo em conta que há outros poemas em que aparecem nomes femininos, mas não tão expressivos, creio eu.

***

Fico por aqui, meus amigos.
Entretanto estou a ver se me livro do persistente vírus do Covid que, pelos vistos, veio para ficar. 

É que ele anda aí. Se cuidem...

Abraços virtuais.
Olinda


===

Poema: Citador

Alguns posts sobre Bocage no Xaile de Seda:


12 comentários:

  1. Boa tarde de paz, querida amiga Olinda!
    Em primeiro lugar, desejo à amiga melhoras da peste que veio sim para ficar. Em maio, minha nora teve de novo (pela terceira vez).
    Nunca tive queda por Bocage, confesso, mesmo reconhecendo seu valor literário.
    Agora, aqui em seus posts, fica mais suave e clara a leitura.
    Quando até a natureza pasma, estamos diante da plena Beleza que o escritor quis expressar.
    Tenha bons dias de recuperação plena!
    Beijinhos com carinho

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  2. O GRANDE Bocage, tão desconhecido, afinal. Saúdo esta homenagem com um grande poema desse nosso poeta.
    Um abraço.

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  3. Bocage bem trazido aqui e a homenagem ficou linda!
    Desejo melhoras pra ti e que esse vírus se afaste pra SEMPRE!
    Já incomodou muito!
    beijos praianos, chica

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  4. Antes de tudo, uma boa recuperação! Anda pois...

    Este poema é muito belo, com um gosto ainda arcádico / neoclássico, possui uma mestria espantosa:

    Um beijinho e boas melhoras.

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  5. Magnífico e belo Poema de Bocage, que bem o disse: "Assombrou-se o Universo (e)
    A Natureza pasmou."
    Pois, é um encanto saborear versos assim!
    Obrigado, Olinda pelas notáveis "lembranças" que nos mostra.


    Beijo
    SOL da Esteva

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  6. O seu “Manuel Mª. de Barbosa” sabia das coisas.
    Homem inquieto, um dos promotores de intermináveis discussões políticas, soube aproveitar ao máximo os prazeres da noite lisboeta do seu tempo.
    Poeta de escrita desenhada, foi um menino pobre, passou por castigos, prisões, foi amigo de prostitutas e marinheiros e um dia, nesta vida de aventuras, o então militar tornou-se poeta.
    Uma rápida recuperação para ti, amiga Olinda.
    Um abraço!!!

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  7. Um prazer enorme ler publicações assim, pelo conteúdo e a forma como as prepara para lermos. Obrigado.
    Fica a preocupação com o vírus que teimoso continua a andar por aí a fazer estragos. Desejo sincero que rapidamente recupere.
    Um kandando com amizade e estima.
    .
    P.S. O comentário lá na Serra já entrou 😊 e eu agradeço a gentileza.
    Boa semana e as melhoras.

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  8. Bocage. "a natureza pasmou" por ele ser tão talentoso. Sempre gostei muito de ler este poeta satírico e crítico.
    É sempre uma aprendizagem passar por aqui, minha Amiga Olinda.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  9. E passados mais de 2 séculos ainda ficamos pasmados com a poesia deste poeta.
    Boa semana.
    Um abraço.

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  10. Sempre um prazer passar por aqui... e pasmar com as suas escolhas de excelência, Olinda! Bocage... irreverente e genial.. gostei de o ler nesta versão mais contida e profunda... verdadeiramente romântica, e sem nenhum termo mais cru...
    Magnifica escolha poética! Um beijinho! Votos de rápidas melhoras!
    Ana

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