sexta-feira, 24 de junho de 2022

O Ano da Morte de Ricardo Reis



Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou, É uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou  a olhar-me, mas não me vejo, No entanto, tem sombra, É só o que tenho. Tornou a sentar-se, cruzou a perna, E agora, vai ficar para sempre em Portugal, ou regressa a casa, Ainda não sei, apenas trouxe o indispensável, pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio, não sei, por enquanto estou aqui, e, feitas as contas, creio que vim por você ter morrido, é como se, morto você, só eu pudesse preencher o espaço que ocupava, Nenhum vivo pode substituir um morto, Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto, Bem dito, com essa faria você uma daquelas odes. Ambos sorriram. Ricardo Reis perguntou, Diga-me, como soube que eu estava hospedado neste hotel, Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens, respondeu Fernando Pessoa, E entrar, como foi que entrou no meu quarto, Como qualquer outra pessoa entraria, Não veio pelos ares, não atravessou as paredes, Que absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasmas, os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres, como qualquer mortal, subi a escada, abri aquela porta, sentei-me neste sofá à sua espera, E ninguém deu pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um desconhecido, Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos vê, querendo nós, Mas eu vejo-o a si, Porque eu quero que me veja e, além disso, se reflectirmos bem, quem é você, a pergunta era obviamente retórica, não esperava resposta, e Ricardo Reis, que não a deu, também não a ouviu. Houve um silêncio arrastado, espesso, ouviu-se como em outro mundo o relógio do patamar, duas horas. Fernando Pessoa levantou-se, Vou-me chegando, (...) 

Excerto pgs 79/80

E ei-los. Criatura e Criador. Agora ambos irreais, cada um na sua própria condição. Trata-se de ficção em cima de ficção sob a lupa de José Saramago, que aproveita para fazer o retrato do país, nesses anos trinta do nosso descontentamento. Decorria o Estado Novo que desde 1926 vinha fazendo história, no pior sentido, e na Europa a Guerra Civil em Espanha; a ascensão ao poder de Mussolini, em Itália; e a expansão da ideologia nazi, na Alemanha.

 

Ricardo Reis (pormenor). 1958 - 
Almada Negreiros*

Quanto a Ricardo Reis, como se sabe, é o heterónimo clássico, helénico e imbuído de um paganismo revisitado, edificado literariamente quando Pessoa quis “escrever uns poemas de índole pagã”, concebido como tendo uma educação em colégio de jesuítas, formado em medicina, expatriado por ser monárquico para o Brasil e regressado a Lisboa depois da morte de Pessoa, nascido antes dele em 1877 e que supostamente lhe terá sobrevivido, morrendo, segundo a ficção de Saramago em 1936, um ano após a morte do seu autor. aqui


Fernando Pessoa 
Almada Negreiros - 1964

Aproveito para aqui inserir um dos belos poemas (ode) de Ricardo Reis:


Segue o Teu Destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis
in "Odes"


Na penúltima página, 406, pode ler-se:

Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa de cabeceira buscar The god of labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, (...)

A criatura reúne-se ao criador.
Assim o quis Saramago.
E o destino cumpre-se.

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Bom fim de semana, meus amigos.

Abraços

Olinda


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José Saramago:
O Ano da Morte de Ricardo Reis, Excerto pgs 79/80
*Pormenor Ricardo Reis:
MultiPessoa-Mural da Fac. de Letras de Lisboa

15 comentários:

  1. Interrogo-me como é que Fernando Pessoa conseguiu criar estas personagens, todas diferentes na poesia que fazem. E digo isto depois de ler esta Ode de Ricardo Reis. Quanto ao livro de José Saramago "O ano da morte de Ricardo Reis", foi um livro que me deu imenso prazer ler, como todos os que ele escreveu. Este excerto é bem significativo da qualidade da escrita e imaginação do autor. Eu adorei este livro.
    Um bom fim de semana, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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  2. Os dois marcantes da nossa Literatura!

    Abraço

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  3. O saber nunca ocupou lugar. Grato pela partilha.
    .
    Cumprimentos cordiais.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  4. Recriar personagens diversas é ter vidas diferentes. Pessoa conseguiu-o com Mestria.
    Um belo Post para análise.
    Grato, Olinda, pela oportunidade de reflexão.


    beijo
    SOL da Esteva

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  5. Boa tarde de sábado, querida amiga Olinda!
    ... uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou a olhar-me, mas não me vejo...

    A uma altura da vida, cabem reflexões filosóficas como autoconhecimento e até mesmo crescimento pessoal e literário.
    Um mestre tem o mérito de saber se posicionar ante suas próprias sombras.
    Gostei muito de ler o texto e os versos :
    Segue o teu destino,
    Rega as tuas plantas,
    Ama as tuas rosas.
    O resto é a sombra
    De árvores alheias.
    Vamos amando nossas "rosas"...
    Tenha um final de semana abençoado!
    Beijinhos com carinho de gratidão e estima
    😘🕊️💙

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  6. Amo Fernando Pessoa.
    Leio pouco Saramago
    Pois quando o leio divago
    Se ponto é uma coisa à toa
    Ou se a vírgula é boa.
    Porém se leio Fernando
    Sinto a alma se enlevando,
    Meus sentimentos em bando,
    Dando-me amor e ternura,
    A mente se transfigura
    E o sinto, de vez em quando.

    Venero Fernando. Abraço fraterno. Laerte.


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  7. Um grande livro que gostei de ver aqui lembrado e homenageado.
    Boa semana, Olinda. Abraço.
    ~~~~~~

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  8. Este livro do Saramago é fabuloso. Como são, de resto, quase todos os seus livros.
    Gostei do poema que escolheu do Ricardo Reis.
    Boa semana, amiga Olinda.
    Um abraço.

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  9. Amiga Olinda,
    “José Saramago” é para mim um dos pilares da literatura mundial.
    Acredito que dentro de sua inteligência ímpar, “Saramago” desejou ser um dos heterônimos de “Fernando Pessoa”: “Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis”.
    “Fernando Pessoa” foi plural... Sendo vários “Pessoas” dentro de um só “Fernando”.
    Gostei muito da tua publicação.
    Um carinhoso beijo, uma boa semana e cuide-se bem!!!

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  10. Grandes autores da nossa literatura. Parabéns por compartilhar. Bjs querida. Bom vim no seu cantinho

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  11. Tinha acabado de ler "O Ano da Morte de Ricardo Reis" quando ouvi Saramago, no Terraço, pela primeira vez , que me autografou o volume.

    Ninguém previa , na altura, estar em presença do futuro Nobel de Literatura - nem sequer Isabel, que o estava acompanhando e a quem retirou depois as dedicatórias ...

    Minha amiga, abraço e boa semana .

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  12. Como sempre, muito interessante esta tua publicação e, como sempre acontece, aprendi muito aqui. Fui ler a biografia de Ricardo Reis e mais uma vez me surpreendeu a genialidade de Fernando Pessoa na construção tão perfeita dos seus heterónimos. Creio que todos nós temos facetas diferentes, atitudes tomadas num dia e que no outro são totalmente diferentes, sonhos também distintos, assim como gostos; se um dia estamos inclinados para admirar uma paisagem, num outro talvez estejamos absortos , pensando na vida e na sua finitude. Mas, o que nos falta a nós é a capacidade de nos identificarmos conforme cada uma das nossas diferentes personalidades. Isso é para o genial Fernando Pessoa e pronto! Quanto a Saramago, gosto muito do que escreve, apesar de, no inicio, ter estranhado a maneira de escrever sem pontuação e, em alguns livros, sem dar nome aos personagens. Agora já me habituei, mas considero que a pontuação faz falta. Obrigada, Olinda, por teres trazido dois Grandes Senhores da nossa nossa lingua Portuguesa, com informações detalhadas, algumas desconhecidas por mim . Deixo-te um beijinho e votos de que estejam todos bem de saúde. Desculpa a ausência, mas já sabes o motivo; às vezes uma febrezita impede a Bia de ir para a escola e além disso, com o meu irmão cá, o tempo fica mais curto. Sei que me entendes. Um abraço também, Olinda 🙏 🌻
    Emilia

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  13. Você escolheu um poema magnífico. Aliás, tudo que se lê de Fernando Pessoa e de José Saramago fica conosco para sempre. Postagem excelente, querida. Grande abraço.

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  14. Gosto muito de Saramago, de Fernando nem tudo que leio amo, mas sua escolha é dos seus poemas que mais admiro. Bjsss ,Boa noite

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