Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me parece solto.Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente de lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-se peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosos as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.
In: Provavelmente Alegria
pgs. 54/55
Em 1947 publica o primeiro livro: “Terra de Pecado”, e com o romance “Levantado do Chão”, Prémio Cidade Lisboa em 1980, afirmou-se como um autor de pensamento de esquerda, que fala de trabalhadores para trabalhadores. É “Memorial do Convento” que o confirma como um dos grandes autores de língua portuguesa.
Bolero - Ravel
Jorge Donn
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Um belo poema. Para nossa reflexão. Parabéns por compartilhar. Sucesso aqui. Bjs querida
ResponderEliminarGrata,Nal, pela visita e comentário.
EliminarBeijinhos
Muito lindo,gostei de ler!
ResponderEliminarbeijos praianos,chica
Muito obrigada por ter vindo, Chica, mesmo de férias ;)
EliminarBeijinhos
Li quase toda a obra que Saramago nos deixou.
ResponderEliminarMas não tinha lido este poema. E não seria fácil esquecê-lo, tal é a sua dimensão humana e literária.
Obrigado pela partilha.
Boa semana, amiga Olinda.
Abraço.
Também li no que se refere à prosa. Quanto à poesia, estou a dar agora os primeiros passos.
EliminarGrata, amigo Jaime.
Abraço
Tenho o livro "Provavelmente Alegria", mas li este poema como se fosse a primeira vez. Ou antes senti o mesmo que senti quando o li pela primeira vez: fascinada com as palavras e inquieta com o conteúdo.
ResponderEliminarUma boa semana com muita saúde.
Um beijo.
Poema deveras inquietante, querida Graça. Desenrolar a memória e penetrar no seu âmago...
EliminarBeijos
Poema que me fascinou ler
ResponderEliminar.
Saudações cordiais… semana feliz
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Muito obrigada, Ricardo, pela visita e comentário.
EliminarAbraço
Um poema sublime de José Saramago.
ResponderEliminarExcelente escolha.
Beijinhos
Grata, Maria, pela visita e comentário.
EliminarBeijinhos
Boa noite de paz, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarNão o tinha lido e do Saramago conheço pouca coisa ainda.
Um poema muito forte, parece que correm as palavras como sangue nas veias.
Gosto muito do vídeo, amiga e da coreografia.
Tenha uma nova semana abençoada e feliz!
Beijinhos com carinho de gratidão e estima
😘🕊️💙
"Um poema muito forte, parece que correm as palavras como sangue nas veias" .
EliminarNesta frase encontra-se a essência deste poema de Saramago.
Muito obrigada pela sua presença e pelo comentário.
Querida amiga Rosélia, desejo-lhe Saúde e boa disposição. Beijinhos.
Olá, minha querida Olinda, gosto imensamente de Saramago, lia muito seu blog, "O caderno de Saramago". Esse poema é belo, e não conhecia.
ResponderEliminarObrigada pela bela partilha,
"Eu escrevo para desassossegar meus leitores" (José Saramago)
Uma ótima semana pra você,
beijinho
Olá, querida Taís
EliminarUm desassossego os livros de Saramago. Nem todos gostam do seu estilo. É quase um choque lê-lo pela primeira vez. Depois não paramos :)
Grata pelo seu comentário, minha amiga.
Beijinhos.
Gosto de Saramago e orgulho-me de ser ele o nosso Nobel de Literatura.
ResponderEliminarTive o gosto de o conhecer e acho estranho que o considerem arrogante .Nem consigo imaginar como Lobo Antunes reagiria se ouvisse de mim a um livro seu a apreciação pública que fiz a "A Jangada de Pedra" e que Saramago aceitou calmamente.
Bolero é uma peça única e a direcção de Sergiu Celibidache (1971) é também inexcedível de paixão e de entrega .
Querida Olinda, beijinhos e boa tarde :)
O que terá dito a amiga São a propósito da "Jangada de Pedra"? Fiquei curiosa. :)
EliminarSergiu Celibidache, é de um virtuosismo inexcedível na direcção desta peça musical.
Toda a nossa atenção se centra nele, esquecendo-nos um pouco daqueles que executam a música...
Beijinhos
Boa tarde Olinda,
ResponderEliminarAs minhas palavras são parcas para falar deste magnífico poema de Saramago, que não conhecia.
José Saramago é na verdade um grande talento da nossa Literatura maior.
Gostei de ver este magnífico bailado ao som do Bolero de Ravel.
Beijinhos e continuação de boa semana.
Ailime
Amiga Ailime
EliminarMuito obrigada pelo seu comentário a este poema de Saramago e ao bailado executado por Jorge Donn, ao som deste Bolero.
Beijinhos
Amiga Olinda,
ResponderEliminar"José Saramago" é um escritor ímpar, que estimula seus leitores por suas narrativas sem interrupções e vírgulas. Mas também, é um escritor que se afirma, sem precisar "dar nomes as aves ou aos homens".
"Saramago" para mim, sempre será construtor de cultura em meus dias.
Um carinhoso beijo para ti e boa semana!!!
Olá, amigo Douglas
EliminarÉ com muito prazer que vejo a sua admiração por José Saramago.
Sendo o nosso laureado com o Prémio Nobel de Literatura, mais um motivo para homenageá-lo e divulgar a sua obra, especialmente neste ano em que se comemora o seu Centenário.
Muito obrigada por ter vindo prestigiar com as suas palavras este meu intento.
Abraço
Olinda
Belíssimo poema que adorei ler, Olinda.
ResponderEliminarObrigada pela gentil visitinha e gentil comentário.
Beijinhos
Verena.
Olá, Verena
EliminarTambém lhe agradeço a visita e comentário.
Beijinhos
Adoro a poesia de José Saramago. Aliás tenho programado para junho, por ser o mês da sua partida, na rubrica Poesia às Terças 4 poemas de Saramago.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Olá, Elvira
EliminarIrei ler e apreciar os poemas de Saramago.
Publicarei, neste mês, um ou dois apontamentos sobre a sua prosa.
Beijos
Hoje, dia internacional da criança, inevitavelmente, pedimos à vida que abençoe as nossas crianças com saúde e lembramos com tristeza todas as que sofrem os horrores da guerra e da fome. Ao lermos este poema de Saramago, o nosso pensamento vai lá atrás no tempo e ao olhar aquele " novelo emaranhado da memória " começamos a puxar o fio, devagarinho , desatando aqueles " nós cegos", com cuidado para que ele não
ResponderEliminarse desfaça; o novelo é grande, o fio já é comprido, mas gostamos de o ir puxando para lembrar os tempos idos, alguns que correram serenos como um rio de águas claras, seguindo no seu leito , até encontrar o mar, também ele calmo, mas também há os outros , os momentos dolorosos que mais parecem um amontoado de nós cegos dificeis de desatar. Uns e outros ali estão no novelo, fundindo -se nas nossas lembranças, dando-nos a única verdade, a única certeza de que um dia o fio rebenta , o silêncio será " primordial " e as mãos, sem fio para puxarem, tranquilas se juntarão uma à outra. É o fim do nosso novelo da vida e temos de aceitar essa finitude, por muito que custe.
Amiga, de Saramago só tenho lido prosa e gosto muito de todos os livros, embora às vezes ache confusa a falta de pontuação e a ausência de nomes. Poesia, vou lendo com muito gosto, a que vai sendo partilhada nos blogues. Obrigada, Amiga, por me teres dado a conhecer este poema de grande reflexão. Beijinhos e saúde para todos
Emilia
Querida Emília
EliminarQue bela interpretação deste poema de Saramago! Um percurso desenrolado, das vicissitudes aos momentos felizes, das agruras e dos silêncios e à finitude da vida.
Tudo faz parte da nossa passagem por este mundo.
Beijinhos aos netos e tudo de bom lhes desejo.
Felicidades, minha amiga, junto à Família. Grande abraço.
O termo ''protopoema'' é uma novidade... O 'priberam' não o conhece...
ResponderEliminarGosto mais da prosa de Saramago que é frequentemente poética...
Um mês de Junho agradável e feliz. Beijinho
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A sério, Majo?
EliminarDeixe-me rir. :)))
Quanto à prosa de Saramago, concordo.
Também lhe desejo dias luminosos.
Beijo
lo conocí en un hotel de madrid , Saramago es arte que renace ,flute en las venas y eriza los sentidos protopoemas es toda una lección de silencios , suspiros que en vaiven con el bolero de Ravel me lenan de emoción ...un lucero de acacias para ti Olinda por tan bello post .. feliz fin de semana tuyo tu amigo . jr.
ResponderEliminarComentário que é um autêntico poema na sua leitura destas palavras de Saramago, caro Jose.
EliminarAgradeço as palavras de apreço por esta publicação.
Igualmente lhe desejo um óptimo fim de semana.
Abraço
Para Nobel fio de seda, como é merecido, está claro...
ResponderEliminara menos que, nestes tempos pertubados, o "fio salvívico" do poema sirva de corda de enforcado do autor ...
saudações amigas
Escapou-se-lhe o fio do "fio salvífico" de que fala.
EliminarMas sendo de autor para autor, os senhores que se entendam.
Grata pela sua presença.
Retribuo as saudações amigas.
Caminhos... Não conhecia o poema e fiz um passeio pela trajetória que o grande escritor lhe deu. Vídeo lindo! Bjs
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