sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Carta à minha filha

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila? 
Eras pequena e o cabelo mais claro, 
mas os olhos iguais. Na metáfora dada 
pela infância, perguntavas do espanto 
da morte e do nascer, e de quem se seguia 
e porque se seguia, ou da total ausência 
de razão nessa cadeia em sonho de novelo. 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se 
de junho, o teu cabelo claro mais escuro, 
queria contar-te que a vida é também isso: 
uma fila no espaço, uma fila no tempo 
e que o teu tempo ao meu se seguirá. 

Num estilo que gostava, esse de um homem 
que um dia lembrou Goya numa carta a seus 
filhos, queria dizer-te que a vida é também 
isto: uma espingarda às vezes carregada 
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande 
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te 
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre 
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à 
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua 
de mentiras, em carinho de verso. 



E o que queria dizer-te é dos nexos da vida, 
de quem a habita para além do ar. 
E que o respeito inteiro e infinito 
não precisa de vir depois do amor. 
Nem antes. Que as filas só são úteis 
como formas de olhar, maneiras de ordenar 
o nosso espanto, mas que é possível pontos 
paralelos, espelhos e não janelas. 

E que tudo está bem e é bom: fila ou 
novelo, duas cabeças tais num corpo só, 
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio 
ameaçando chamas muito vivas. 
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura 
se transformou castanho, ainda claro, 
e a metáfora feita pela infância 
se revelou tão boa no poema. Se revela 
tão útil para falar da vida, essa que, 
sem tigelas, intactas ou partidas, continua 
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo. 

Não sei que te dirão num futuro mais perto, 
se quem assim habita os espaços das vidas 
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos. 
Porque te amo, queria-te um antídoto 
igual a elixir, que te fizesse grande 
de repente, voando, como fada, sobre a fila. 
Mas por te amar, não posso fazer isso, 
e nesta noite quente a rasgar junho, 
quero dizer-te da fila e do novelo 
e das formas de amar todas diversas, 
mas feitas de pequenos sons de espanto, 
se o justo e o humano aí se abraçam. 

A vida, minha filha, pode ser 
de metáfora outra: uma língua de fogo; 
uma camisa branca da cor do pesadelo. 
Mas também esse bolbo que me deste, 
e que agora floriu, passado um ano. 
Porque houve terra, alguma água leve, 
e uma varanda a libertar-lhe os passos. 

Ana Luísa Amaral

in 'Imagias
(Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)' 


Na senda das Cartas de Amor encontrei esta que atesta sobremaneira o amor de mãe. Pareceu-me a forma ideal de terminar esta série.

Agradeço a todos, visitantes e comentadores, a excelente companhia ao longo destes dias.

Um grande abraço.


E agora, nós e FAUSTO: Por este rio acima







Sobre a autora:

Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956-) é uma poetisa portuguesa, tradutora e professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Aqui

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Poema - Citador
Imagem - daqui
Video - Youtube

18 comentários:

  1. Um texto complexo e
    muito bem alinhavado.
    Me fez refletir e viajnr em sua
    escrita.
    Bjins de sexta feira
    CatiahoAlc. do Blog Espelhando
    http://frasesemreflexos.blogspot.com/

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  2. Olá:-Deliciei-me a ler tão sedutora carta.
    .
    Cumprimentos poéticos

    *** Caminhar de mãos dadas, contigo ***

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  3. Aprecio imenso a escrita de Ana Luísa Amaral. Sente-se-lhe essa forma natural e sedutora de viajar pela vida. Sim, querida Olinda, esta série de cartas de amor termina no carinho do verso". Tão bom!
    E "Por este rio acima", com o Fausto, prosseguimos em harmonia. Gosto.

    Beijinhos

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  4. Uma carta de amor fantástica.
    Terminou muito bem, com elementos
    de muito bom gosto.
    Beijinhos, Olinda.
    ~~~~

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  5. OI OLINDA!
    LINDA E EMOCIONANTE CARTA, ENTRE AS METÁFORAS O AMOR TRANSCENDE.
    ABRÇS
    https://zilanicelia.blogspot.com/

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  6. Magnífica carta de amor de mãe que a Ana Luísa Amaral escreveu e que nos remete para Jorge de Sena na "Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya". Muito bela!
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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    Respostas
    1. Muito obrigada, querida Graça, pela referência.

      Bj

      Olinda

      Eis um pequeno excerto dessa "Carta..." de Jorge Sena, memorável, datada de Junho de 1959:
      (...)
      Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
      vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
      É isto o que mais importa - essa alegria.
      Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
      não é senão essa alegria que vem
      de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
      alguém está menos vivo ou sofre ou morre
      para que um só de vós resista um pouco mais
      à morte que é de todos e virá.
      Que tudo isto sabereis serenamente,
      sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
      e sobretudo sem desapego ou indiferença,
      ardentemente espero. Tanto sangue,
      tanta dor, tanta angústia, um dia

      - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -

      não hão-de ser em vão. Confesso que
      muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
      de opressão e crueldade, hesito por momentos
      e uma amargura me submerge inconsolável.
      Serão ou não em vão?
      (...)

      http://cvc.instituto-camoes.pt/poemasemana/20/cartas4.html

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  7. Revejo-me nesta belíssima expressão de Amor. Os encantos e as recordações que o tempo deixa no seu rasto constante, são uma espécie de caminho que nos trás de volta.
    Bem ajustado o Fausto no seu "por este rio acima".

    Beijo
    SOL

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  8. Querida Olinda
    Gosto muito da escritora Ana Luísa Amaral.
    Curiosamente conhecia esta "carta" de a ter ouvido, declamada, no Youtube.
    Ouvida é talvez ainda melhor do que escrita.
    Terminas em apoteose!

    Estou muito grata pela presença na festa de Aniversário do meu “pimpolho”. Ele gostou muito de te ver lá… 😘
    Obrigada!

    Desejo bom Fim-de-semana
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  9. Num filme de desenhos animados, ou para crianças, que se chama "Maléfica", se não estou a confundir com outro, uma das personagens adormece, como a Bela Adormecida, sendo vaticinado que só acordará com um beijo de amor verdadeiro; ora acontece que um cavaleiro que dizia amá-la a beija, e ela não acorda, só despertando com o beijo de uma mulher que a trata como mãe, provando-se, segundo esta visão do filme, que o amor verdadeiro é o que existe entre pais e filhos! Excelente maneira, pois, de terminar a série sobre o amor!
    Beijo.
    Bom fim de semana.

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  10. acompanho-te nessa viagem "por esse rio acima".
    e que bela aventura a vida!

    abraço, amiga Olinda Melo

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  11. Bela viagem!
    Confesso que não conhecia bem a poetisa, antes de ela ter entrado no Programa de 12.º ano. Foi uma descoberta.
    Beijinho

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  12. Caros amigos leitores!

    Agradecendo as vossas visitas, convidamos-vos hoje a ler o capítulo 8 do nosso conto escrito a várias mãos "Ecos de Mentes". Esta semana pela mão da Fernanda Simões, interpretando Sebastião.
    https://contospartilhados.blogspot.com/2019/02/ecos-de-mentes-capitulo-8.html

    Com votos de uma excelente semana,
    saudações literárias!

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  13. E desde as primeiras frases da carta já pude perceber que havia sido escrita por alguém com alma de poeta, essas palavras têm uma força poética capaz de tocar qualquer pessoa. Um abraço, Olinda. Há sempre conteúdo valioso por aqui.

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  14. Uma carta lindíssima. Não há amor mais bonito do que o de uma mãe pelos filhos.
    Também gosto de escrever cartas às minhas meninas, ainda pequeninas.
    Senti muita empatia com a autora.
    Obrigada pela maravilhosa partilha
    Beijinho

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  15. Linda poética epistolar nesse poema ou texto consagrando o amor materno como bálsamo divino que redime, ampara, consola, reprime, ralha, mas mais que tudo, sublima o amor maternal. A poetisa teve a felicidade de compor versos sem que os fosse, formando assim uma prosa poética. Parabéns pela postagem! Gratidão pela partilha! Abraço fraterno! Laerte.

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  16. Maravilhosa carta de amor, e com é profundo e eterno o amor de uma mãe.
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

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  17. Ana Luísa Amaral é uma boa escritora e esta carta de amor de mãe é magnífica.
    Obrigado pela partilha, pois não conhecia.
    Olinda, continuação de boa semana.
    Beijo.

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