quarta-feira, 5 de julho de 2023

O AMOR

 



Na selva amazónica, a primeira mulher e o primeiro homem olharam-se com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

_Cortaram-te? - perguntou o homem.
_Não - disse ela. _Fui sempre assim.

Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Havia ali uma chaga aberta. Disse:

_Não comas iúca, nem graviolas, nem nenhuma fruta que se rache ao amanhecer. Curar-te-ei. Deita-te na rede e descansa.

Ela obedeceu. Com paciência tomou as mezinhas de ervas e deixou que lhe aplicassem as pomadas e os unguentos. Tinha de cerrar os dentes para não rir quando ele dizia:

_Não te preocupes.

O jogo agradava-lhe, se bem que começasse já a sentir-se cansada de viver sem comer e estendida numa rede. A lembrança das frutas fazia-lhe nascer água na boca.

Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:

_Encontrei-o! Encontrei-o!

Tinha acabado de ver o macaco cuidando da macaca na copa duma árvore.

_É assim - disse o homem, aproximando-se da mulher.

Quando terminou o demorado abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que estavam deitados juntos, desprendiam-se vapores e fulgores nunca vistos, e era tal a sua formosura que morriam de vergonha os sóis e os deuses. 

*

[59]Referência bibliográfica
D'Ans, André Marcel, La verdadera Biblia de los cashinahua, Lima, Mosca Azul, 1975

in: Memória do Fogo I - Os Nascimentos,
De Eduardo Vale Ano, pgs 31-32


Numa Trilogia intitulada "Memória do Fogo", Eduardo Galeano procura devolver à história o alento, a liberdade e a palavra. Ao longo dos séculos, a América Latina não sofreu apenas o despojo do ouro e da prata, do nitrato e da borracha, do cobre e do petróleo: sofreu também a usurpação da memória. 
Eu não sou historiador. Sou um escritor que quis contribuir para o resgate da memória sequestrada de toda a América, sobretudo da América Latina,...
quis conversar com ela, partilhar os seus segredos, perguntar-lhe de que diversos barros nasceu, de que actos de amor e de violação provém. 
(...) p. 9


A explicação e visualização do mundo através de lendas e mitos desde a formação do continente, mas também do impacto dos conquistadores sobre os conquistados...

Um trabalho de investigação de grande fôlego.


*

Boa quarta-feira, meus amigos.
Abraços
Olinda


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Paisagem: Amazónia

11 comentários:

  1. Haja grande fôlego!
    Não havia lido ainda o texto, mas o final dele é de realmente causar vexames a quem ama pela metade ou pouco:
    "....o demorado abraço...
    ... estavam deitados juntos...
    morriam de vergonha os sóis e os deuses"
    A expressão do Amor é de causar, como disse acima com outras palavras, até inveja e outros...
    Ele é delírio extasiante.
    É fruta fresca com mel...
    Não deveria ser prepotente dominação...

    Olá, querida amiga Olinda!
    Um post e tanto... parabéns pela abordagem do tema. Gosto de sentir o que leio, Amiga.
    O Amor é infinito em palavras e definições bem como em sentidos.
    Tenha dias abençoados e amorosos junto aos seus!
    Beijinhos

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  2. Hermoso relato. Te mando un beso.

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  3. Descobrir a natureza pela própria natureza é um ato libertador de tocante humanidade.
    Abraço telúrico.
    Juvenal Nunes

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  4. Um conto divertido. Parabéns
    Cumprimentos poéticos

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  5. Muito interessante, Olinda. Pensando bem, o primeiro homem e a primeira mulher tiveram de aprender de alguma forma o " acto amoroso " e nada melhor do que através dos macacos de onde, creio eu, evoluimos. Pena que não tenhamos também seguido o exemplo deles no que respeita à convivência em sociedade; não consta que alguma vez eles tivessem provocado guerras e " matado por nada " infelizmente, mesmo hoje, os povos da selva amazónica são despojados de tudo e estão a ser dizimados pela ambição do homem ; já não são os colonizadores de outros tempos que os despojaram do ouro e outros materiais preciosos, mas podemos considerar que são usurpadores tantas vezes terriveis que matam muitos dos que tentam proteger esses povos e essa floresta tão necessária ao planeta. É certo que o povo também precisa de explorar as riquezas lá existentes, mas na justa medida, com equilibrio, para que as comunidades que deram origem à América do Sul feita de um povo " nascido de diversos barros ", continuem nas suas terras, trabalhando-a de maneira sustentável, ao mesmo tempo que protegem esse paraíso que é a Amazónia. Tiraram-lhes tudo e deram-lhes as doenças que antes nunca tiveram e que estão a acabar com eles. Gostei muito deste post e, como sempre digo, saio daqui mais sábia. Obrigada, querida Amiga e os meus votos de boa disposição e saúde para todos. Beijinhos
    Emilia

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  6. Belo texto de Galeano! Linda leitura! beijos, ótimo dia! chica

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  7. Reparem logo para onde o homem olhou, rsrssr
    Será que reparou que a rapariga não tinha barba (no rosto) como ele?
    *
    Quarta feira com Saúde, Paz, e Amor.
    */*

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  8. Boa tarde. Que publicação tão interessante e que curioso o texto reproduzido. Muito obrigado.
    Um abraço.

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  9. O conto é interessante , melhor ainda é o uruguaio Eduardo Galeano com sua boa literatura e sua anáilse ética e a histórica dos 'nascimentos' do mundo. Quando queremos delirar um pouquinho e falarmos num mundo possível citamos a 'utopia Galeano' e seus muitos livros tipo 'As veias abertas da América Latina'. Obrigada,Olívia pela ótima publicação que nos faz voltar ao tempo e praticar saudavelmente a tal utopia de Galeano.
    Um abraço e boa semana

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  10. Foi um prazer ler "O AMOR" com um cunho virginal.
    Muito grata , querida Olinda.
    Um beijo.

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  11. Muito obrigado Olinda por este momento.
    Momento de amor, de inclusão, de partilha e aprendizagem.
    Deixo meu kandando e vou mais enriquecido.

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