quinta-feira, 30 de junho de 2022

MÃE!


Maternidade -1935- Almada Negreiros 


Mãe! Vem ouvir a minha cabeça a contar historias ricas que ainda não viajei. Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado! Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar. Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras. Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa. Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!

In: A Invenção do Dia Claro
1921

Entre outras considerações, Jorge de Sena, na sua análise da Obra de Almada Negreiros, refere que:

(...)a coesão interna do livro assenta no "tom de menino pequeno que está a falar com a sua mãe", o que torna este texto modelar relativamente a uma característica "profunda da linguagem de Almada Negreiros, que é a de uma simplificação no sentido, não dum primitivismo propriamente, mas do que nós poderíamos dizer duma sofisticação da sua simplicidade."




José Sobral de Almada Negreiros (1893 -1970) foi um artista multidisciplinar português que se dedicou fundamentalmente às artes plásticas (desenho, pintura, etc.) e à escrita (romance, poesia, ensaio, dramaturgia), ocupando uma posição central na primeira geração de modernistas portugueses. aqui

Foi contemporâneo de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor entre outros nomes grandes da Literatura.




Revista de que só saiu um número em Novembro de 1917 e que pretendia ser a voz impressa do Futurismo em Portugal. Segundo Fernando Pessoa, a apreensão deu-se quando a revista, tendo escapado por uma "sorte inexplicável" à censura prévia que vigorava em tempo de guerra, se encontrava já nas montras das livrarias. A polícia, condescendente, consentiu que "os rapazes salvassem o maior número de exemplares que pudessem. (...)

Termino aqui, por agora, estes apontamentos sobre a obra deste artista multisciplinar cujo falecimento completou, a 15 deste mês, 52 anos.

Abraços
Olinda


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Imagem: Maternidade -  Obra de Almada Negreiros, 1935
A invenção do dia claro - https://docero.com.br/doc/sn55vxs
Portugal Futurista - Wiki

22 comentários:

  1. Boa tarde Olinda,
    Um texto que me deixou fascinada pela escrita de Almada Negreiros, que infelizmente não conheço. Nunca é tarde para nos debruçarmos sobre a obra dos grandes da Literatura. Conheço-o melhor nas artes plásticas.
    Obrigada pela partilha.
    Beijinhos,
    Ailime

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    1. Cara Ailime
      É frequente lembrarmos Almada Negreiros, antes de mais, na sua vertente plástica. Contudo foi bastante activo tanto na escrita interventiva como literária.
      Grata pelo comentário.
      Beijinhos

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  2. Boa noite serena, querida amiga Olinda!
    Comecei a ler o texto e já fui viajando nas palavras... Não poderia deixar de me emocionar muito.
    Nunca tive uma mãe que passasse a mão em minha cabeça, bem no sentido literal nem no pejorativo.
    Gostaria de ter tido no sentido literal. Entretanto gostei muito de acarinhar meus meninos e a todos que amo. Fazer um chamei, um cafuné.
    Nem a Pandemia secou meu coração.
    No mais, deixo ao legado de outros amigos argumentarem fatos literários. Nem consigo no momento, sei que me compreende.
    Tenha uma noite abençoada!
    Beijinhos com carinho de gratidão e estima
    😘🕊️💙

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    1. Muito obrigada pela linda participação no blog Espiritualidade, amiga.
      Gostei muito.
      Gratidão
      Feliz sábado!
      Beijinhos

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    2. Minha amiga Rosélia
      Eu é que lhe agradeço.
      Os seus desafios enriquecem-nos.
      Beijinhos
      Olinda

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    3. Querida Rosélia
      Infelizmente a vida nem sempre é justa.
      Compreendo a sua mágoa por lhe ter faltado
      essa afeição e esses cuidados.
      Em compensação, faz tudo para que todos à sua
      volta se sintam felizes e bem amados.
      Grata pelo seu comentário.
      Beijinhos
      Olinda

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  3. Tão belo, tão sensível este texto de Almada Negreiros! "A invenção do dia claro" (título que faz inveja a qualquer escritor) é um livro maravilhoso.
    Tudo de bom, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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    1. Querida Graça
      É quase um grito, não é verdade? E o interessante é que no livro fala com a Mãe em vários momentos, como por exemplo: "Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava - pôr ciência na minha vida. Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada. Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta? " E muitos mais.
      Grata pela sua presença, minha amiga.
      Beijinhos
      Olinda

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  4. Publiquei, em tempos, a mesma imagem e o mesmo texto. No entanto, li-o agora, pausadamente, em voz alta e foi como se nunca o tivesse lido!!

    Muito obrigada, querida Olinda, por esta publicação tão bela que me agarrou a alma. Este é um momento de grande fragilidade emocional para mim.

    Um grato beijinho.

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    1. Querida Janita
      Grata pela sua presença aqui no Xaile, com o seu belo comentário. Este texto de Almada Negreiros é deveras emocionante. Já o tenho lindo em formato de poema, mas também gostei dele em texto corrido como o encontrei no download que fiz da obra. E a imagem, um momento feliz da obra do autor e não só. Consta que alude ao nascimento do primeiro filho e terá encontrado na sua execução a perfeição que buscava, " harmonia entre quadrado e círculo, entre esferas celestial e terrestre, na figura da Maternidade" E não há dúvida que texto e imagem fazem um conjunto maravilhoso.
      Muito obrigada pelas suas palavras de apreço. :)
      Beijinhos
      Olinda

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  5. texto mui belo e sensível, até arrepia de tão belo.
    o texto é uma novidade para mim. obrigado.

    abraço. amiga

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    1. Olá, Manuel Veiga
      "...até arrepia de tão belo".
      Palavras que dizem bem da profundidade
      deste texto. Adorei.
      Muito obrigada.
      Abraço
      Olinda

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  6. Olá Olinda.
    Tão belo este poema.
    Não percebo como Almada Negreiros é tão pouco "falado"
    Merecida homenagem.
    "Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
    Belo, tão cheio de tanto!
    Brisas doces**

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    1. Tem razão, é pouco lembrado.
      Contudo, A. Negreiros é um artista multidisciplinar que não
      se contenta com pouco. Em tudo o que faz há essa
      luz que procura alcançar, quase perto de Deus.
      Obrigada, minha amiga, pela presença e comentário.
      Beijinhos
      Olinda

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  7. ha sido un placer Olinda leer tan bello texto lleno de emoción y sentimientos con tan significativas ilustraciones con la que lo acompañas...paso a desearte feliz fin de semana y un fuerte abrazo . jr.

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    1. Grata, José. É também um prazer recebê-lo aqui no
      "Xaile de Seda", deixando-me as suas impressões
      sobre este nosso autor que nos legou uma Obra imensa.
      Bom domingo, meu amigo.
      Abraço
      Olinda

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  8. Almada Negreiros, pouco referido em Poesia, foi o Homem de sentimentos completos.
    "Falar" da e com a Mãe é um saber que apenas quem sente pode interiorizar.
    Delicioso!
    Grato por no-lo trazeres


    Beijo
    SOL da Esteva

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    1. É verdade, Sol da Esteva. A. Negreiros punha a alma
      e o coração em tudo o que fazia, não só na arte como
      na vida, em que defendia com garra os seus pontos
      de vista. Basta lembrarmo-nos do "Manifesto Anti-Dantas":)
      Bom domingo.
      Abraço
      Olinda

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  9. Que beleza de postagem, Olinda! A sensibilidade do grande escritor é gritante no texto que escolheu. Gostei demais! Bjs.

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    1. Querida Marilene
      Muito obrigada. Muito bom ter gostado.
      É, na realidade, um texto belo e emotivo.
      Tenha um bom domingo.
      Beijinhos
      Olinda

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  10. Dois nomes incontornáveis da literatura.
    Muito boa tarde!

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    1. Grata, Mister Vertigo, pela visita e comentário.
      Abraço
      Olinda

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