sábado, 26 de fevereiro de 2022

Procuro o lugar onde começa o silêncio...




Procuro o lugar onde começa o silêncio.


Convoco-me para os lugares da infância, meu paraíso
tão desmoronado, tão precocemente desaparecido.
Um anjo austero apoderou-se de mim enquanto eu
escondia nos bolsos os berlindes coloridos.
Quis nascer de novo. Da mesma mãe. Com o mesmo
pai. Mas num tempo sem infâncias desamparadas,
sem deuses distraídos na cadência das horas lentas...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio da cintilação das sombras pelo chão.
O silêncio onde me esvaeço, na negritude da noite.


...Vem de tão longe, meus filhos. Vem do começo
sagrado dos tempos e do silêncio dos dias ao acaso, 
a grandeza de cada gesto. É preciso ter asas e deixar 
que o fascínio vos conduza até ao infinito, onde a avidez 
da vida inaugure no olhar o prodígio do espanto e a pura 
nascente de todas as sedes. ...





Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio transparente do mar, dos barcos ao longe,
da sombra dos mastros, do brilho dos búzios.


Esbarro na sombra, na minha sombra, e alargo os
passos para encurtar a distância entre os barcos e a
ilha mais próxima, onde uso o declive certo do olhar
para deslindar a ausência da água em meus olhos 
secos pela maresia.
Procuro o silêncio desconcertante das madrugadas, 
com a luz ainda baça do orvalho a dissipar-se. 
...

Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das sementes, da melancolia das árvores,
do restolho do trigo, do afago da terra.


No impulso da manhã, o nevoeiro esfarrapa-se sobre
os arbustos, incerto e sem peso. É o momento em que 
o olhar não tolera a luz que incide sobre branquíssimas
açucenas. Digo pétala, e o perfume de cada flor
estremece no olfacto como um sismo brando, com
réplicas no chão flexível que me prende e torna
urgentes os caminhos repetidamente pisados. ...





Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O imenso silêncio dentro de mim, na ansiedade das
palavras distantes, quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,  ...


Nas pontas dos dedos, uma insubmissa escrita teima 
na promessa de um poema com sílabas luminosas.
Escrevo silenciosos vocábulos, agora que a poesia se
detém no fingimento de entrelinhas, soletrando 
a febre nos lábios. Podem dizer de mim que nunca me
cansei das palavras porque foi com elas que me
aprendi inteira.
Regressa a mim, poesia!...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das montanhas azuis, da neve, das 
planícies eternas, das glicínias, do vinho maduro, da 
música de schubert, do coração dos pássaros
da fulguração da alba, ...


...O coração não cabe nas palavras quando a dádiva e o 
fascínio se confundem.
Distancio-me de mim. Um breve lume acende na lembrança
o prodígio da luz de maio.
E deixo que a emoção encontre a ânfora onde guardei o 
mel com que aclarei os gritos abafados no recato da noite.
Sinto ainda o cheiro do leite quente guardado em 
meus seios para delírio precoce da boca que sugou
a minha sede. ...




Procuro o lugar onde começa o silêncio
O profundo silêncio de deus. O celestial silêncio dos
anjos.

...
Em minha garganta dilato os gritos sangrantes que 
antígona não gritou para que ressoem em todos os 
templos, em todos os palácios, em todos os mares,
em todas as praias, em todas as planícies, em todas
as montanhas, em todos os desertos, em todas as
casas. Na cegueira de uma febre maldita e benigna.
No amor sem perdão dos homens e dos deuses. ...


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio definitivo da morte.
...

Procuro definir o eixo doloroso do espaço seguido
por antígona, feminina e livre, até à transgressão mais
tangível de um mundo nocturno.
Ela não chorou. Não dramatizou o lamento. Não
implorou aos deuses qualquer auxílio. Ela ficou
isolada, agarrada à compaixão sentida, em total
solidão. Lançada na treva, levou nos cabelos a
grinalda de uma morte ausente da morte: antinomia
alucinante, a antecipar a perda do paraíso. ...
 


Procuro o lugar onde começa o silêncio.





ANTÍGONA PASSOU POR AQUI numa pequena mostra das profundas palavras de GRAÇA PIRES. 

Assistimos a uma sentida homenagem, em prosa poética, a mais uma figura feminina, desta feita mitológica, Antígona, que atravessa os tempos e, nas devidas proporções, traz o seu rasto trágico até aos dias de hoje. 

Em Isadora, a autora entra-lhe na pele e transmite-nos as suas dúvidas, as  tristezas, a incompreensão dos contemporâneos perante a interpretação da arte que lhe preenchia a vida. Com Antígona embrenha-se no mundo antigo lê-lhe os pensamentos e os mitos, a sua forma de estar e de actuar, trazendo-o assim para o presente.

Sentimo-nos envolvidos, como que fazendo parte dessa travessia que nos atinge o âmago, num caminho de pedras percorrido com a garganta apertada de emoção. 

Busca de um silêncio que abafe a dor, mas que também faz ansiar pelo doce encanto da infância, não desamparada, a magia do aleitamento materno e a grandeza de cada gesto desde o começo dos tempos:

Obrigada, querida Graça, por nos proporcionar a oportunidade de penetrar nessa sua esfera em que a cultura e o talento andam de mãos dadas. 


Abraços
Olinda


=====

Neste texto, por cores :

1) Em roxo: desideratum que separa cada grupo de textos, no livro.
2) Em cinzento: Excertos de alguns dos textos que compõem a obra

(Das páginas: 11, 18, 26, 36, 37, 42, 45, 48, 51, 56, 60, 62, 66, 72, 73, 77, 81)

3) Considerações minhas - Palavras em preto.


Referência a "Isadora", Livro de Poesia - "Jogo sensual no chão do peito" - Graça Pires

Imagens: pixabay

18 comentários:

  1. Bom dia de esperança, queridas amigas Olinda e Graça!
    Tenho um livro da Graça e, realmente, é de uma grandeza impecável a obra da escritora de alma.
    "Procuro o lugar onde começa o silêncio
    O profundo silêncio de deus. O celestial silêncio dos
    anjos."
    Também procuro o silêncio fecundo e me propício a estar nele sem titubear.
    Sua condução da apresentação do livro está plena em sensibilidade e sabedoria.
    Saio daqui enlevada. É um post para ler e reler bem como saborear.
    Seja bem-vinda, amiga Olinda!
    Tenha tido bom descanso e que seus dias sejam abençoados!
    Beijinhos com carinho de gratidão e estima

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  2. Fico sem palavras, minha Amiga Olinda. Muito obrigada por divulgar este meu livro, com excertos que não foram escolhidos ao acaso. Eles são o resultado de uma atenta e reflexiva leitura. É bom ter leitores assim. Bem haja pelo carinho e sensibilidade.
    Muita saúde.
    Um beijo.

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  3. Que maravilha e Graça nem nos surpreende. É sempre inspiradíssima e nos toca com suas palavras! beijos às duas, chica

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  4. Acredito que seja um livro fascinante de ler
    .
    Saudações poéticas … feliz fim-de-semana
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  5. "Procuro o lugar onde começa o silêncio.
    O imenso silêncio dentro de mim, na ansiedade das
    palavras distantes, quando, sem aviso, ele se afunda
    no meu peito insensatamente, ..."

    Tivesse eu esta imensa sabedoria, e estas palavras podiam ter saído do meu peito, tal a identificação com que me identifico com elas.

    Tocante, sensível e de uma profundidade fruto de uma apreciação cuidada, esta sua divulgação ao livro da poeta e amiga Graça Pires, querida Olinda.

    Vou fazer um pausa, preciso de descansar e o título desta publicação retirado do livro da nossa amiga comum, parece que foi escrito para mim.

    Um beijinho grato a ambas, por nos embelezarem os dias e serem pessoas muito especiais.
    Até breve!

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  6. Boa tarde Olinda,
    Já tive o privilégio de ler esta obra de Graça Pires,cuja leitura muito me emocionou pelo conteúdo e pela forma tão bela e profunda como a Poeta, que quase se transcende, transmite o talento, a beleza e a sensibilidade que lhe vão na sua alma poética que tanto admiro.
    Parabéns pela forma brilhante como apresentou e considerou este excelente trabalho de Graça Pires.
    Um beijinho e um bom fim de semana
    Ailime

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  7. Parabéns a vós, queridas Olinda e Graça, pessoas que estimo e admiro e tenho o privilégio de ter como amigas, ainda que não as conheça pessoalmente.

    Forte abraço para ambas.

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  8. A Graça sempre nos encanta com as suas profundas, sentidas e belas palavras. É sempre um prazer ler o que escreve.
    Beijinhos para as duas.

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  9. Como é que combinam tão bem neste poema infância e silêncio?
    Lindo!

    Abraço

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  10. Agora é Antigona que passa por nós através dos belissimos poemas da nossa Amiga Graça, mas já passou Isadora e também, se me permites Olinda, as Mulheres de Modigliani e em todos esses poemas eu revejo as mulheres do mundo inteiro e de todos os tempos. Não sei se faço a interpretação certa, pois só a Graça sabe o que lhe vai na alma ao deixar sair tão sábias e belas palavras, mas, creio que o " pano de fundo " é sempre o amor em todas as suas formas; o amor que estas mulheres têm à vida, a maneira corajosa como lutam contra os preconceitos, como sofrem caladas e sem" choro" pelos seus sonhos, indo contra tudo e contra todos para os realizarem, mulheres que são amantes, mães, filhas, enfim...lutadoras em todos os aspectos, principalmente quando " mexem com as suas crias ". Temos hoje mulheres desamparadas , feridas, que buscam " o silêncio que lhes abafe a dor e que lhes permita a volta, em pensamento, " aos tempos de
    infância" onde outra mulher , com os mesmos anseios, as mesmas dificuldades, as amparavam e as alimentavam nos seus seios, esse gesto maior que ultrapassa os tempos. Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã. são as que sempre canta a nossa Amiga Graça com muito engenho e arte. E em cada uma delas não estará um pouco de cada uma de nós? Acho que sim! Querida Olinda, fizeste aqui um trabalho maravilhoso na apresentação do livro da Graça e gostaria imenso de ter capacidade para fazer um comentário à altura deste teu post, mas....pelo menos, o que escrevi é do coração. Sei que as duas grandes Amigas mereciam muito mais. Para compensar, deixo os meus parabéns e, mais importante, o meu abraço carregadinho de amizade sincera 👏 🙏
    Emilia

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  11. Surpreendente! Magnífico! A Arte das palavras tão ilustremente apresentada.
    Ao lê-la, senti-me pequenino, ínfimo...
    Parabéns, com a minha gratidão.

    Beijos
    SOL da Esteva

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  12. Um livro que me deu muito prazer ler. Gosto imenso da sua poesia.
    Abraço, saúde e bom domingo

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  13. Esse poema da nossa querida amiga, é o retrato de nossas vidas, o silêncio...sim quantas vezes o silêncio é nosso aliado, nosso refúgio, nossa proteção!
    Nossa amiga Graça é uma querida de todos nós e uma poeta com uma consciência de todos os problemas que afligem o mundo. Maravilha!
    Um beijinho pra vocês, duas queridas, duas grandes mulheres.

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  14. Querida Olinda
    A poesia da Graça é de uma beleza e profundidade raras! E os trechos que escolheste provam-no, sem sombra de dúvida.
    Dá vontade de ler uma vez, e outra, e outra...
    Parabéns à Graça pela sua poesia, e parabéns a ti pela escolha.

    RE: Muito obrigada pelas tuas lindas palavras - de conforto pela perda que sofri e de parabéns pelo Aniversário do meu blog.
    Começo a sentir um certo cansaço, confesso, e vontade de fechar as portas. Mas depois lembro-me que, se o fizesse, iria sentir muito a vossa falta... e vou-me aguentando. (penso que este cansaço também é fruto da Covid, por isso tenho esperança de que passe com o tempo...)

    Minha querida, deixo-te um abraço apertado, carregadinho de Amizade, e votos de muita saúde.

    Uma semana feliz.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  15. A Graça é especial, pela arte, pela inteligência, pela sensibilidade, pela luz e sombra que coloca na escrita.

    Em todo o caso, estava a ler e a ver as belas imagens e só consigo pensar o quanto o nosso planeta é bonito e o quanto o ser humano é capaz de o tornar ainda mais belo, seja pela cultura, seja pelo pensamento.

    Ao mesmo tempo que tem em si um poder de destruição sem igual em toda a natureza e uma incapacidade em evoluir para lá deste ponto.

    Um grande abraço e votos de um bom início de semana.

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  16. A Graça Pires é uma grande poetisa que muito admiro.
    Este seu livro é excelente.
    Boa semana, amiga Olinda.
    Abraço.

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  17. uma bela e subtil "orquestração" do Silêncio, de que a amiga Olinda é exímia e que generosamente nos concede, sobre muma partitura de naipes e timbres que a sublime POesia de Graça Pires. ambas distintas, elegantes e sabedoras.

    o resultado é brilhante
    gostei muito deste "concerto a quatro mãos!

    abraços

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  18. Quero agradecer a todas as pessoas que vieram ler os meus textos e, principalmente a quem comentou. Obrigada a todos. Obrigada, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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