sábado, 6 de julho de 2019

Guilherme de Almeida - o "Príncipe dos Poetas" - IV

ESTA VIDA




Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.


     (1890-1969)



Embora tenha aderido ao movimento da Semana de Arte Moderna, não encontrou nela os reais valores para a criação artística. Algumas obras revelam elementos do passado, principalmente da escola parnasiana, amenizados por um toque de neossimbolismo em “Nós” e “A Dança das Horas”. Depois da atuação na semana, deixa-se contaminar pelos valores do movimento e algumas obras espelham seu ideário nacionalista em “Meu” e “Raça”. 

Em seguida, o poeta retorna ao ponto de origem. Cultua valores parnasiano-decadentes em “Encantamento”, “Acaso” e “Você”. Faz reviver o estilo dos trovadores no “Pequeno Cancioneiro”. Assume também caracteres da lírica renascentista em “Camoniana”. aqui





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Poema: daqui
Imagem: Flamboyant Campinas

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