quinta-feira, 18 de julho de 2019

Do livro "Duas Janelas"








Uma alegria haver línguas
que não entendo 
delas foram varridas
as lembranças todas
nelas o sentido passa entre as palavras 
como a luz entre as plantas 
nelas é sempre a infância 
balbucio, manhã, cachorros 
nelas as núpcias de tudo 
com tudo 
se celebram 
nelas tudo é ruído 
doce, antigos barulhos 
nelas não há 
como na nossa 
mortos por baixo 
(ou antes há muitos 
só não os nossos) 
nelas as palavras de amor
ainda crepitam 
como madeiras novas 
ando nas ruas entre as pessoas
que cantam (parece-me que cantam) 
nessa língua que não entendo 
parece-me que expressam claramente
a vida e a morte própria
e dos outros 
ou que apenas gorjeiam
sibilam, silvam 
ando nas ruas e é como uma conferência 
de pássaros, pianos roucos 
ando nas ruas e é como se lesse 
às pressas 
cartas em chamas 
ando nas ruas pensando como é possível
tantas pessoas falando nada 
em voz alta 
quando me dirigem por equívoco 
a palavra sorrio como se pedisse desculpas 
depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa 
e devolver-lhe a palavra que ela deixou 
cair por descuido
Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 07 de novembro de 1977) é uma poeta brasileira. Concluiu o mestrado em Literatura pela UFMG com uma dissertação sobre o romancista João Gilberto Noll. Trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Seu primeiro livro, A vida submarina (2009), reúne poemas vencedores do Prêmio cidade de Belo Horizonte nos anos de 2007 e 2008. Ganhou também o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, pelo seu segundo livro, Da arte das armadilhas (2011).Sua poesia, segundo o crítico Murilo Marcondes, alia a elaboração formal a uma reflexão sobre a vida, promovendo um "estreitamento entre linguagem e experiência". daqui

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Poema - daqui

3 comentários:

  1. quem me dera ser uma palavra estranha
    e incendiar assim palavras outras, que se resguardam
    como pérolas, ou são vibrantes como cristal.

    muito belo, adorei conhecer

    abraço. amiga Olinda

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  2. ... mas, impossível devolver a palavra que caiu por descuido...
    Gostei de ler e ouvir.

    Nuvem passageira que somos!

    Bom fim-de-semana!
    Beijos.

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  3. "... nelas o sentido passa entre as palavras
    como a luz entre as plantas "

    Em busca de um sentido, digo eu.
    Realmente gostei.

    Beijinho, querida Olinda.

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