sexta-feira, 19 de julho de 2019

Autorretrato

Como pode água nascer
de pedra
como pode, posso eu
também ter matéria
grave e intransponível
conjugada a esta outra
transparente, irrepresável.

Basta um olhar à fotografia –
o bebê no colo
o papel envelhecido.
Ao mesmo tempo que um avança
somando anos
o outro recua, mais antigo.

Quando as tardes pareciam
maiores
quando o fim do dia
era o fim do dia
quando tatuagens não eram
para sempre.


O tapete da sala era branco
e peludo, parecia um bicho
depois da ração diária.
O sol entrava geométrico
e, espremendo-se entre as grades
desenhava escarpas
onde eu me deitava
junto ao bicho.
Eu fechava os olhos
para ver as cores no escuro.




Só o que morria era inseto.

Sorrir nunca foi fácil.
Cresço com a boca miúda
e ainda não gosto de piadas.

Conservo a interrogação
quando de frente ao espelho:
como pode ser tão diferente
o frontal do perfil?
E me pergunto, desde lá
se todos enxergamos as mesmas coisas
se a língua não é tão só
um mesmo código para coisas distintas
se entre mim e você
não há um abismo sem solução.

O que sei é o que não sei
sobre projetos de futuro.

E mesmo assim escrevo cartas
(funcionam melhor que espelhos)
para meu próprio endereço.
Me respondo como se já tivesse
arquivado toda a memória
e pudesse confortar
confrontar o porvir.

Quando escrevo me passo a limpo
sem riscar as imperfeições.

A infância ainda gravita
em mim. Não só
a minha, mas outras
que vêm com músicas
sub-reptícias, por um atalho
por onde atravessam
com a velocidade
incalculável
do tempo.

Dar nome às coisas:
primeiro passo torto
até que se deseje
as coisas puras
sem auxílio de som —
a rosa única
a pedra que se sabe pedra.
Segundo passo, falho:
inominar.

Nos retratos guardamos nos olhos
o vidro dos olhos do gato
a cama ainda desfeita
a última tempestade
e o escuro do que virá.

[Colher nas mãos o que
das mesmas mãos se extinguiu:
pedra papel tesoura.]


Laura Liuzzi


Laura Liuzzi (Rio de Janeiro, 1985) é uma poeta brasileira.
Trabalhou com o documentarista Eduardo Coutinho, como assistente de direção, nos filmes Um Dia na Vida, As Canções e Últimas Conversas.
Em 2016, foi autora convidada na Festa Literária Internacional de Paraty. Participou da mesa de abertura, sobre a poeta Ana Cristina Cesar.
É responsável pelo núcleo de vídeo do Instituto Moreira Salles.







Na poesia de Laura Liuzzi ressaltam o gosto pelas sonoridades, a discrição e delicadeza e uma confessional investigação de si, que nos leva a poéticas universais. Procurando poesia nos detalhes, seu texto é jovem, mas sem perder o peso de uma experiência que se dá para além da idade. Carioca, Laura publicou os livros Calcanhar (2010) e Desalinho (2014).


Veja, se lhe interessar, estes posts sobre:
Ana Martins Marques
Alice Sant'Anna
Ana Cristina César


NOTA:
TERMINO, POR AGORA, ESTA SÉRIE QUE INTITULEI: " NOVA GERAÇÃO DE POETAS CONTEMPORÂNEOS BRASILEIROS".


====
Imagem: daqui

9 comentários:

  1. Não conhecia a poeta, mas fiquei maravilhado com a sua poesia.
    Obrigado pela partilha.
    Olinda, um bom fim de semana.
    Beijo.

    ResponderEliminar
  2. Li este poema de Laura Liuzzi e encontrei-me nele em várias citações. Gosto de ler poesia onde me encontro. Há uma nova geração de poetas brasileiros que me está a surpreender. Obrigada por partilhar, minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  3. Não conhecia esta poetiza, e gostei do poema. Vou pesquisar.
    Abraço e bom fim-de-semana

    ResponderEliminar
  4. Poeta é toda a gente
    Que diz o que vive e sente.
    Mas, Poeta pertinente
    É @ que for abrangente.

    Amei este Poema vivo (vivido).



    Beijo
    SOL

    ResponderEliminar
  5. Bom dia de alegria, querida amiga Olinda!
    Estou gostando muito das poetas brasileiras que você tem postado
    Na poesia escolhida, tenho muito gosto no autorretrato e tambem o fiz em vários momentos já.
    A catarse se da com eficiência.
    Tenha um abençoado fim de semana!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

    ResponderEliminar
  6. Não querendo desvalorizar o mérito,
    é uma quase autobiografia...
    Aprecio muito o poder de síntese,
    ó menina eloquente!
    Grata pela apresentação.
    Ótimo fim de semana, Olinda.
    Tudo bom.
    Beijinhos
    ~~~~~

    ResponderEliminar
  7. Confesso a minha ignorância em relação à autora do poema que apreciei bastante!

    Abraço

    ResponderEliminar
  8. "Quando escrevo me passo a limpo
    sem riscar as imperfeições."

    síntese perfeita de um auto-retrato a corpo inteiro
    gostei muito, amiga Olinda

    abraço

    ResponderEliminar
  9. Percebe-se o detalhe da peça. Tudo tem importância, como na vida afinal. Lê-se com agrado, quase com apetite. Gosto mesmo.

    Beijo, querida Olinda.

    ResponderEliminar