Os valores da República ou os que deveriam nortear a República são relembrados todos os anos. De um ano ao outro parecem, contudo, ser esquecidos. Com isto não quero dizer que não haja gente de muito boa vontade que trabalhe para o bem comum. Sempre que as instituições claudicam temos todos a esperança de que apareça alguém que lhes deite a mão. Temos impregnada em nós a síndrome do encoberto, de que alguém aparecerá do nada para resolver os nossos problemas. Acabamos por não avaliar verdadeiramente o que está mesmo à frente do nosso nariz. Especialistas em aplicar paninhos quentes, enrodilhamo-nos em casos que seriam anedóticos se não tivessem um cariz de muita gravidade.
Voltando ao passado, relembro aqui três homens de quem já falei em outras publicações deste blog. A diferença é que os apresento, desta feita e por minha conta e risco, com a auréola de heróis trágicos, no contexto da 1ª República. Não direi que trazem todas as características do herói trágico de Aristóteles. Só que noto neles uma heroicidade e uma tragédia que me fazem pensar e que me incomodam pelo insólito das suas mortes.
Conspiradores, revolucionários, republicanos. São eles, Miguel Augusto Bombarda, Carlos Cândido dos Reis e António Machado Santos. Os dias 2, 3 e 4 de Outubro de 1910, seriam cruciais nas suas vidas, acreditando eles que iriam todos poder festejar a implantação da República. Reza a História que Miguel Bombarda é atingido mortalmente por um doente mental, no dia 3; Cândido dos Reis, à ultima hora, é invadido por dúvidas e suicida-se no dia 4; quem se aguenta até ao fim é Machado Santos que ficou conhecido como o "herói da rotunda", mantendo depois uma vida política activa, para vir a ser assassinado na noite sangrenta, de 19 de Outubro de 1921, quando a camioneta fantasma andou a ceifar vidas, caçando-as nas suas casas e, em muitos casos, no seio das suas famílias.
Machado Santos seria feito senador e ocuparia cargos ministeriais no governo de Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais, o mesmo Sidónio Pais que com um golpe de Estado ascende a Presidente da República em 1917 e, de forma ditatorial, suspende e altera por decreto algumas normas da Constituição de 1911, inaugurando assim a República Nova. Com a auréola de herói, nasce o Presidente-Rei, epíteto grafado por Fernando Pessoa no seu extenso poema, "À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais".
"(...)
Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.
Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.
Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!
Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!
(...)"
Sidónio morre assassinado, a 14 de Dezembro de 1918, à entrada da estação de comboios do Rossio, criando-se-lhe assim a imagem de mártir. A sua acção no âmbito de uma República recém-nascida, com instituições criadas diferentemente do regime destituído a 5 de Outubro de 1910, deveria ser interpretada como? Poder-se-ia falar já em populismo esse bicho-de-sete-cabeças de que se fala tanto e quase ninguém sabe bem o que é?
Grandes transformações no panorama mental em relação a ideologias estão a verificar-se. Se há uns anos os espaços ocupados por partidos de esquerda e de direita eram compreendidos por toda a gente, hoje andamos à deriva. Suponho que os conceitos que lhes serviram de base estão um tanto esvaziados de conteúdo. E quanto a debate de ideias, ideários políticos? Tudo aponta no sentido de que estamos a viver já uma nova Era. Até onde nos levará é que é a grande incógnita.
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Ler no "Xaile de Seda": Os desaires da 1ª República