quarta-feira, 17 de junho de 2015

Elegia da lembrança possível





O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.


O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.


O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.


O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.


O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.


O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.


O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.


Jorge Luís Borges
  1899-1986


Argentino. Escritor, tradutor, crítico literário, ensaísta.
Um homem que reúne no seu âmago a memória do mundo, através de milhentas leituras e análises. Penso ver isso no conto A Biblioteca de Babeluma metáfora em que mundo e literatura se confundem, segundo algumas interpretações. Assim, ler um texto é tentar decifrá-lo, mas se considerarmos que o próprio mundo está impregnado de linguagem, a própria realidade pode ser considerada como uma grande biblioteca cheia de textos à espera de quem os decifre.
Nas suas obras destacam-se temáticas como a filosofia, a metafísica, a mitologia, a teologia. Mas também aborda a cultura das pampas argentinas e lida com campanhas militares reais, como a guerra na argentina contra os índios, tratando-as como pano de fundo para produção na área da ficção.

Não é a primeira vez que nos envolvemos aqui na leitura deste autor. E não há-de ser a última. Descobrir a sua obra é como fazer uma viagem ao princípio de tudo. Aliás, é um exercício da lembrança possível num mundo ainda por acontecer.

Abraço.

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Imagem-pampa argentina:daqui

14 comentários:

  1. Olá Olinda
    É deleite vir aqui e ler os primorosos versos deste soberbo escritor
    O que será de nós se for as memórias que guardamos com tanto carinho
    Elas são os pilares de nossas vivências e sabedoria
    Beijos minha amiga e um doce sorriso

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  2. É um belíssimo texto de um grande autor. Eu tenho um carinho especial por autores argentinos, por isso fico muito contente de ter tido o prazer de me deparar com este poema de Jorge Luis Borges aqui hoje.
    Beijinhos e boa quarta-feira :)

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  3. Se eu tivesse memória
    Tantas coisas lembraria
    E muitas outras,quem diria
    Que juntas fazem história.

    Um poema que não se percebe de uma só vez.

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  4. OI OLINDA!
    UM BELO POEMA.
    ABRÇS
    -http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  5. O que não daríamos nós, sim...

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  6. Já li alguma coisa dele-

    Será que ainda subsiste a polémica sobre se seria mesmo Jorge Luís Borges aquele senhor cego que se apresentava publicamente como sendo o escritor?

    Querida Olinda, grato abraço

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  7. Grande...enorme! Um dos meus autores preferidos!

    Beijinho, querida Olinda.

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  8. Não conheço quase nada deste autor. Este é um belo poema. Obrigada pela partilha.
    Um abraço

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  9. Desconhecia por completo o autor, por isso fico satisfeita por ler o que deixas-te dele!

    Obrigada

    Bjxxx

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  10. Belos versos. O que não daria pela memória, para reviver os melhores momentos que passaram! Belas palavras. Desconheço o autor, mas, já gostei.
    Querida: Adorei seus comentários em meus santinhos e quão ricas suas palavras como resposta. Fico muito contente que você gostou deles e terá mais, aos poucos irei acrescentando mais santos e santas.
    Beijos e excelente final de semana.

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  11. Um escritor que merece aplausos. Seus versos abordam o não vivido e, por isso mesmo, ausente da memória. Os poemas que já li, de sua autoria, são voltados para o lado filosófico, com extrema sensibilidade. Parabéns pela escolha. Bjs.

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  12. ~~~
    ~~ Gratíssima pela magnífica leitura...

    ~~ Espero, de bom grado, por mais...

    ~~~~~ Abraço amigo. ~~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  13. Grande autor...Não conhecia, mas vou pesquisar...

    Abraço

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