sábado, 30 de agosto de 2014

Para falar de mim




  
1

vieram de mim os longos sóis e os longos dias.
vieram de mim o arrastar dos bancos, os cânticos das igrejas,
e vim eu, senhor do meu nariz, nobre sem títulos nem castelos,
nem divisas,
duma pequena ilha, perdida numa concha
de mar, onde nasci. era a primeira vez
que eu abria os olhos, e senti-me rei e marinheiro. Estava
embrulhado numa alga, e adormecia numa gruta, adornada
por búzios quietos.os peixes visitavam-me e afastavam
os murmúrios, os gritos, os monstros pelados,
 e o eco da minha voz que habitavam os meus sonhos.é por
isso que me revesti da luz cintilante das suas escamas
e tenho, dizem-no as mulheres que desconheço, um suor
sem perfume, um suor sem matéria, enquanto que o meu corpo
tem  encanto do cheiro a maresia.*

José António Gonçalves















E, para falar de mim, oh para falar de mim, tenho, na verdade, a meu favor os longos sóis e os longos dias de raízes entrançadas no caldo de culturas milenares. De ecos perdidos e achados no fundo do mar, de histórias de príncipes e princesas que viveram felizes para sempre e que venceram monstros e bruxas montadas em cabos de vassoura, de histórias de heróis, mitos e lendas transmitidas por griots nas cubatas, em noites de lua cheia. 

Acordei do meu sono profundo nas ilhas afortunadas, desenleei-me das algas que me prendiam, eu, sereia, desenvolvi pés e ganhei mundo. 


Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando
Cala a voz, e há só o mar. **

Fernando Pessoa 



E assim como o priolo que voa e resiste, sobrevive e avança, eu, na trama que envolve os meus dias, desembaraço-me dos fios que atam os meus gestos e avanço. 

=====


Poemas de: 


*José António Gonçalves, "Para falar de mim",

** Fernando Pessoa, "Ilhas Afortunadas". 


Imagens
Madeira:daqui
S.Vicente, Monte Cara: daqui, e 
Priolo-Açores: daqui

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Ciclo Macaronésia

13 comentários:

  1. ☼ ☀ ☼ ☀
    Coucou et MERCI pour cette magnifique publication Olinda !
    C'est SUPERBE !

    GROS BISOUS d'ASIE
    Bonne journée !
    ☼ ☀ ☼

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  2. Bela postagem amiga. Uma excelente conjugação de texto, poesia e imagem.
    Um abraço e uma boa semana

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  3. As ilhas são por demais afortunadas, tal como as que nos trazes a reler. Falar da gente é algo pessoal, privado, que nos encaminha nos roteiros do sonho...
    Pois!... Eu acho que sonho num lugar que é comum, revejo-me no mentor e saboreio as palavras e as imagens que as realçam.
    Obrigado, Amiga.



    Beijos


    SOL

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  4. Misturar falar de si com Pessoa...
    Só podia resultar um bom post. Gostei.
    Desejo que se encontre bem.
    Bom domingo.
    Bj.
    Irene Alves

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  5. Um belo casamento

    em comunhão de bens

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  6. Este «post» é uma sinfonia, querida Olinda, com ecos de África ancestral e de arquipélagos atlânticos...muito belo.
    Beijo

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  7. Querida amiga
    Hoje vim agradecer a sua linda visita ao meu cantinho.
    Muito obrigada!
    Uma linda e muito abençoada semana para você!
    Abraço amigo
    Maria Alice

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  8. ✿ ✿ ✿ ✿
    MERCI pour ta gentille visite sur mon petit blog Olinda !

    Je t'embrasse bien FORT !
    Bonne journée :o)
    ✿ ✿✿ ✿

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  9. Olá amiga,vim retribuir sua carinhosa visita ao meu cantinho.
    Obrigada,volte sempre e pegue o meu selinho de agradecimento!
    Beijos Marie.

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  10. E também eu, quanto mais os anos passam, me sinto com "ganas" de me desembaraçar "dos fios que atam os meus gestos" e avançar!
    Muito belo, Olinda, obrigada!

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  11. Dois grandes textos que vale a pena ler. Um jeito de falar de si que é pura poesia. Dois grandes nomes que engrandecem a literatura. Amei sua postagem. Bjs.

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  12. ~
    ~ ~ ~ Faço minhas as palavras do Mar, se ele permitir. ~ ~ ~


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