sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Dê-me uma codinha, senhora mãe...

 O Brás ia manducando, de olhos parados, a cismar. Já se enxergavam pela casa fora os trastes todos. Em carrapatinho como a mãe o botou ao mundo, António, o mais novo, de cinco anos, rompeu do quarto de dormir. Vinha de verga arrebitada, com a bexiga cheia. E, chegando-se ao açafate, lamuriou:

_Dê-me uma codinha, senhora mãe...

_Levantas-te com fome canina, rapaz!

O pai deu-lhe um cigalho de broa e, derriçando, correu à soleira da porta, aberta de par em par à madrugada, a verter águas para a rua.

Banhado do sol, nem o Menino Jesus, o taludinho, que se dá a beijar no dia de Reis, a olhar do seu trono de luzes por cima do mar de cabeças. A benção de Deus o cobrisse e fizesse um homem!

O Brás guardou a navalha e disse para o Júlio:

_Anda, vai adiante ver se o tio Joaquim Paula já largou.

_Mete no bolso, comes pelo caminho! - aconselhou a mãe, que o via agarrado à bôla.

O Brás, de saco e guarda-sol em barba de baleia debaixo do braço, desandou:

_Até logo, mulher.

_Ide com Sant'António! - pronunciou ela do traço da porta. _Não esqueçam as testeiras, que daqui a pouco não tenho que calçar.

Aquilino Ribeiro, in Terras do Demo - pgs 128/129


***


Aquilino Gomes Ribeiro (1885 -1963) foi um escritor português.

É considerado por alguns como um dos romancistas mais fecundos da primeira metade do século XX. Iniciou a sua obra em 1907 com o folhetim A Filha do Jardineiro e depois 1913 com os contos de Jardim das Tormentas e com o romance A Via Sinuosa, 1918, e mantém a qualidade literária na maioria dos seus textos, publicados com regularidade e êxito junto do público e da crítica.



Monumento em homenagem a Aquilino Ribeiro
Viseu - Portugal


A linguagem de Aquilino Ribeiro caracteriza-se fundamentalmente por uma excepcional riqueza lexicológica e pelo uso de construções frásicas de raiz popular, cheias de regionalismos....

Apesar de ter optado por uma literatura de tradição, Aquilino procurou ao longo da sua vida uma renovação contínua de temas e processos, tornando-se assim muito difícil sistematizar a temática da sua vastíssima obra. Leia mais aqui



A alma e a Gente - 
Aquilino Ribeiro nas Terras do Demo
José Hermano Saraiva



Sobre as "Terras do Demo", diz o Autor:

"...Chamei-lhe assim porque a vida ali é dura, pobrinha, castigada pelo meio natural, sobrecarregada pelo fisco mercê de antigos e inconsiderados erros e abusos, porque em poucas terras como esta é sensível o fadário da existência." aqui


===

Ver Aquilino Ribeiro no Xaile de Seda - aqui


14 comentários:

  1. Aquilino Ribeiro é um dos prosadores portugueses da minha preferência.
    Chegou a ser proposto para o Prémio Nobel, mas há quem diga que a sua candidatura foi prejudicada pelo excesso de regionalismos utilizados.
    Acho que lhe prestou, aqui, uma merecida homenagem.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

    ResponderEliminar
  2. Vim só visitar , está tudo muito bonito, continue assim.
    Beijinho, eugénia

    ResponderEliminar
  3. Olá, amiga Olinda
    Aquilino Ribeiro era magistral, nas suas histórias e narrativas. Tinha uma forma e linguagem muito próprias de as contar, como o demostra esta que aqui nos traz.
    Excelente partilha, estimada amiga.
    Gostei muito.

    Deixo os meus votos de feliz fim de semana, com tudo de bom.
    Beijinhos, com carinho e amizade.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com

    ResponderEliminar
  4. Muito lindo ler o conto com esse linguajar característico! Bela escolha! Ótimo fds! beijos, chica

    ResponderEliminar
  5. Olá, tudo bem?
    Trecho bem interessante desse autor que fiquei conhecendo agora. O vídeo também é muito interessante, bom conhecer coisas novas.

    ResponderEliminar
  6. Quem sabe... sabe. Este é um lugar de cultura.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  7. Boa noite de Paz, querida amiga Olinda!
    No descanso da noite, venho ler um pouco nos blogs amigos.
    Já tinha ouvido a canção pela manhã.
    Não conhecia ou não me lembro de ter lido o escritor.
    Gosto dos termos regionais.
    Hoje mesmo, conversava com uma amiga sobre eles aqui no Brasil. Têm muitos.
    Hoje em dia, fica até um tanto estranho. No entanto, é valoroso por demais tais textos.
    Você valoriza a cultura em todos os níveis.
    Tenha um final desemanaabençoado!
    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  8. Como sempre a amiga nos dá uma lição de cultura , vou pesquisar sobre o autor do texto. Vale a pena ler mais a respeito_ seu linguajar lembra os recantos da zona rural .Quase um dialeto.
    Obrigada, Olivia _ sempre vovlto aqui para mais leituras notáveis. Se não tiver um livro a mão_lembro vou lá na casa da Olinda e vou encontrar .rs
    Um abraço e boa semana

    ResponderEliminar
  9. Aquilino Ribeiro é um dos Autores que escrevia com a linguagem mais próxima da que era comum no tempo. Notável, como se pode ver/ouvir no vídeo "A alma e a Gente - Aquilino Ribeiro nas Terras do Demo", do Professor
    José Hermano Saraiva.
    A cultura do real está espelhada em cada frase, em cada acto e isso é "o saber verdadeiro".
    Obrigado, Olinda pela evocação de mais esta pérola da nossa Literatura.



    Beijo,
    SOL da Esteva

    ResponderEliminar
  10. Pensei que nunca mais ouviria " dê-me uma coxinha...", mas, infelizmente, a miséria continua, querida Olinda. Na aldeia onde nasci, ouvi muitos a pedirem essa " codinha" e outros tantos a negar-lhes, embora tivessem um pão inteiro que lhes aliviasse a fome. Tenho amigas desse tempo que hoje estão muito bem, mas que ficavam radiantes quando a minha mãe lhes oferecia um pão com marmelada; eram 10 filhos e só o pai trabalhava, ganhando muito pouco; mandava a boa educação que respeitassem a oferta, mas, perante a insistência, aceitavam. Nós eramos dois e por isso a fome não nos atingia. Somos amigas até hoje é são elas que me contam, pois dessas coisas não lembro. É, como elas, tantas outras pessoas viviam no limiar da pobreza, antes do 25 de Abril. Hoje, a minha aldeia está muito melhor, com casas bonitas, carros á porta e ninguém passa fome, felizmente. Mas, por esse mundo fora, nos subúrbios das grandes cidades portuguesas ainda vemos pessoas a viverem com muito pouco, enquanto os mais poderosos se aproveitam da sua fragilidade, aumentado as rendas de casa de uma maneira incompreensível, sem contratos, sem recibo e os governos, parecendo não ver, não constroemi casas acessíveis para que todos vivam com alguma dignidade. Uma vergonha, querida Amiga! Há aqui, na minha cidade, bairros sociais , tão bem construídos, onde nada falta no que respeita a infraestruturas, mas, por que não continuam a construí mais? Não entendo o motivo! E o que falar das guerras que estamos a vivenciar? Quanta desumanidade, quanta ambição pelo poder...
    Aquilino retrata as " as terras do demo " onde a miséria era grande, mas, eu, conheci tudo isso numas terras não consideradas " do demo ", mas onde as " codinhas e o caldo de couves eram as refeições que podiam esperar. Com certeza que sabes, mas essas crianças iam para a escola com fome e voltavam a casa com a esperança que essa pobre refeição chegasse para todos , pois os filhos eram sempre muitos. Querida Olinda, trouxeste um tema pertinente no qual devemos reflectir ; ajudemos os outros, não com uma codinha, mas com um pãozinho fresco, de preferência com manteiga. Beijinhos e saúde para todos vós.
    Emília

    ResponderEliminar
  11. Olá, amiga Olinda
    Passando por aqui, relendo este excelente texto de Aquilino Ribeiro que muito gostei, e deixar os meus votos de uma feliz semana com tudo de bom.
    Beijinhos, com carinho e amizade.

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

    ResponderEliminar
  12. Um grande escritor, de leitura obrigatória.
    Boa semana querida amiga Olinda.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  13. É um gosto ler Aquilino Ribeiro. Eu li os livros todos, mesmo os de leitura mais difícil. Delicioso este texto que publicou.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  14. Confesso que li Aquilino somente na escola.
    Nessa altura preferia Alves Redol , mas tenho de lhe dar uma nova hipótese :)
    Um texto para nos fazer reflectir e infelizmente tão presente ainda.
    Ainda existe muita fome canina neste mundo.
    Gostei.
    Abraço e brisas doces ****

    ResponderEliminar