segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Frágeis que somos

Uma sombra esgueira-se na noite. Dobrada, pescoço enfiado no corpo, olha para todos os lados com ar comprometido. Nota-se-lhe um andar claudicante que a bengala não sustém. Pousa-a no solo ao de leve como que receando o ruído que pudesse fazer, ecoando na cidade fantasma. Das janelas, frinchas franqueiam a olhares pouco amistosos o avançar da figura vestida de escuro. Perscrutam a noite, perscrutam-na a ela, perscrutam os relógios, tudo o que possa dizer as horas. E tudo indica que alguém se encontra na rua, furando o recolher obrigatório. E mais. Sem o respectivo acessório de uso obrigatório que a salvaria de um mau encontro com o vírus. O que fazer? Liga-se para a Polícia? Se dantes andar de máscara era caso suspeito, agora andar sem ela denota falta de civismo e de amor a si próprio e aos outros. Mas, o que se passa? Mais uma sombra sai da esquina também ostentando rosto desnudado. E não mostra constrangimento algum, com um à vontade como se fosse tudo seu. Que descaramento! Muito afoita, a segunda sombra aproxima-se da primeira: Ah, Ah, afinal tu também não trazes máscara. Acho bem, isso é tudo treta. Qual Covid, qual carapuça! Alguns vão ficar ricos com isso. Estou mesmo a ver. Esse negócio das máscaras, dos kits de protecção, do álcool, do gel desinfectante...enfim, e tanto plástico, meu Deus! A primeira sombra responde baixinho: Ando escondida, escapulindo-me pela rua a horas mortas para não ser denunciada... É que não tenho dinheiro para comprar uma máscara sequer. E dizem que é obrigatório! E quem não pode comprá-las?




Boa semana, meus amigos.

Saúde!


17 comentários:

  1. Boa noite.

    Uma boa crónica, diria, muito bem escrita, sobre uma sociedade dividida entre sombras. No que diz respeito à Pandemia:
    O lado que defende o uso de máscaras, dos cuidados de higiene (que já deveriam existir - estou a referir ao lavar das mãos), entre outras medidas, algumas aqui referidas, como o recolher obrigatório.
    E, o lado que defende o extremo oposto, porque encarece as despesas das empresas (E há igualmente a questão das famílias também, como a Olinda refere (e bem), e que não tem propriamente um lado, mas que até aqui, pessoalmente, nunca tinha lido (até porque poucos parecem ligar a quem não pode por não ter rendimentos/parece que não fazem parte do mesmo universo dos outros/uma maioria que parece não ter o mesmo direito á vida que os outros porque a solidariedade é um verbo de encher e essas pessoas, normalmente, são vistas como as que não querem trabalhar e não como as pessoas que são (e ou têm reformas miseráveis, mas trabalharam toda uma vida do nascer ao pôr do sol/ ou vivem com um ordenado mínimo que não chega para pagar as contas, porque não chega), mas , porque limita a economia, porque coloca em causa o emprego, a começar pelos trabalhos mais precários e curiosamente, alguns deles, onde a fuga aos impostos/pagamentos à segurança social é uma realidade e onde parte dos trabalhadores estão sujeitos ao pagamento do ordenado mínimo e a uma outra parcela paga por fora (para os que têm sorte), que como é obvio, quando há um problema, neste caso o lay off a contabilização dos valores a receber é feita com base no que oficialmente é descontado, o mesmo para efeitos de subsídio de desemprego, baixa-médica, seguro se tiver um acidente...

    Um tema importante e que merece ser falado.

    Um Abraço e bom início de semana

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  2. Estamops todos em meses onde é obrigatótioo p iuso das máscaras e creio o temos que fazer por nós e pelos outros. mas sempre há quem negue o vírus, finge nada ver! Faz pensar teu texto...Há sombras assim... beijso, chica

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  3. Acabo agora de receber uma noticia má! Um amigo dos meus pais e que, se tornou um grande amigo nosso, de 83 anos, internado há mais de duas semanas, talvez não sobreviva ao covid. Ele nunca saía de casa, sempre muito cauteliso; já a mulher, não parava , de um lado para o outro e, no inicio sem grandes cuidados. Ela teve alta hoje, ficou sempre sem sintomas . É una 8 ou 9 anos mais nova. Estou a contar este caso, precisamente pelo que escreves na tua crónica, querida Amiga. Infelizmente ainda há os que acham tudo isto uma brincadeira; não quero culpar a minha amiga, mas o virus não nasceu dentro da casa deles; alguém o transportou e não foi de certeza aquele que, agora luta pela vida; ele era até preocupado demais! Mas...há que pensar nos outros e aqui está uma prova. Eu há meses ( muitos ) não o vistava, apesar de ter sido convidada pela minha amiga, várias vezes, para tomar um cafezinho lá em casa. Essa minha amiga sente mt necessidade de sair e conversar, mas, nós tinhamos medo de o contamiar, dado o facto de ser diabético e ter a idade que tem. Crônica muito oprtuna, Amiga! SAÚDE para todos aí em casa. Um beijinho
    Emilia

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    1. E, acabou de falecer este meu amigo que foi vitima da falta de cuidado dos outros, pois ele , diziamos, exagerava nas precauções. Tantas vezes, no verão, queriamos que ele viesse tomar um café , junto à praia, numa esplanada e ele nunca veio; mas foi " forçado " a receber algumas visitas que se esqueciam que ele era de risco; claro..ele não tinha coragem de dizer que não fossem. Até neste aspecto, temos que ter cuidado. Nunca visitar aqueles em situacao3 mais vulnerável. Beijinhos, Olinda e SAÚDE
      Emilia

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    2. Querida Emília

      Lamento imenso o falecimento do teu amigo. E tens razão. Há quem não tenha cuidado nenhum e se considera imune a tudo, esquecendo-se dos que são vulneráveis.

      Obrigada por vires aqui dar este testemunho, um alerta a quem não acredita que o vírus ainda aí e pode ser mortífero.

      Os meus sentimentos, minha amiga.

      Beijinhos
      Olinda

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    3. Obrigada, Olinda, pelo carinho! Um beijinho e SAÚDE para todos vós
      Emilia 🙏⚘

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  4. De facto, já tinha pensado nisso. É muito triste tudo o que estamos a viver, não só pela doença em si, mas as consequências pessoais, sociais, profissionais... E estes pormenores que passam despercebidos. Uma excelente reflexão, sem dúvida! Beijinhos

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  5. Boa tarde Olinda. Temos outro problema. O que será feito das máscaras quando elas não forem mais necessárias? Infelizmente muitas são descartadas de qualquer maneira e poluindo o meio ambiente.

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  6. Um excelente texto que retrata bem este tempo estranho que vivemos atualmente.
    E que não me atrevo a comentar, depois de ler o comentário do João já que ele já disse praticamente tudo.
    Abraço saúde e boa semana

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  7. Gosto de vídeos que mostram dança. Muito bom e animado.
    Seu texto é precioso. Com tudo que vemos, ouvimos, vivemos, ainda existem pessoas que negam a existência do vírus. E algumas delas, contaminadas, já vieram a público, aconselhando os demais a não agirem da mesma forma. Há, realmente, os que, com tantas prioridades, não possuem condições para adquirir as máscaras. Deveriam recebê-las, gratuitamente. Gostei muito e sua crônica. Bjs.

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  8. Boa noite Olinda ( o nome da minha querida mãe)
    Estas sombras frágeis, esquecidas, sem voz, são os nadas deste mundo. Vagueiam na sombra duma sociedade que os descrimina !
    Uma visão muito interessante e diferente. Gostei muito de a a ler.
    Um beijinho

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  9. Infelizmente , não é o vírus o mal maior desse época. Estamos todos desacreditados, tanta insensatez ,tanta mentira , tanto descalabro e tantos 'sombras'...
    O certo é cada um cuidar de se proteger e assim protegerá os outros ao redor e lembrar sempre que não são números, são túmulos.
    Seu texto é forte e nos põe a pensar em quem não tem dinheiro para máscara e os protocolos todos-inclusive água e sabão., ficamos estarrecidos e impotentes. Pior são os que podem usar e não usam ,por ignorância e pelo direito do poder absoluto. Um assunto que comprova o quanto somos frágeis, Olivia.
    Obrigada, pela visita tão bem vinda. Um abraço e boa semana.

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  10. São dias terríveis, estes que esta tragédia nos trouxe. Existem as sombras, as pessoas divididas entre o que é e o que não é, as dificuldades cada vez maiores de muita gente, a solidão, a ansiedade, a morte. Somos demasiado frágeis, de facto. Só nos resta a esperança enquanto esta angústia não passa.
    O seu texto, tão reflexivo e sensível, minha Amiga Olinda!
    Cuide-se bem.
    Um beijo.

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  11. uma "recreaçáo" kafiquiana muito bem escita
    o texto traduz com expresividade o medo (medo de viver)
    e a paralisia que o gesto de "transgressão" da pobre velha solitária,
    que nada tem a perder, provoca nas pessoas "normais",

    um exclente conto, se a Olinda se dispuzer a isso

    abraço

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  12. Estamos a passar momentos difíceis!

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  13. Olá, querida Olinda, ótima tua crônica! Realmente muitos fogem dos protocolos, e muitos esses que têm o suficiente para seguir tudo o que os técnicos em saúde e infectologistas mandam. Porém o que estarrece aos que cumprem os protocolos para proteção, fazem chacota, não cuidam de si (ignorantes), como irão se preocupar com os outros? Vejo em várias partes do mundo uma despreocupação enorme, e outros, em casa resguardando-se para que diminua essa pandemia. Porém, com essa montanha de gente irresponsável, acredito que isso vai muito longe ainda. Depende muito da mentalidade de cada povo. Como pode, ainda, existir gente que nega o que está tão exposto: o covid 19. Mas existe, e tenho de me manter equilibrada em ver e ouvir isso...
    Beijinho, Olinda, uma boa semana na medida do possível!

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  14. Realmente quem não tem pão, muito menos tem máscaras. É a escuridão em que certas franjas da sociedade subsistem. "Os deuses devem estar loucos". As diferenças abismais entre uns e outros são aflitivas e indecorosas.
    Querida amiga Olinda, temos aqui um excelente conto, como afirma o nosso amigo Manuel Veiga.

    Beijo.

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