quinta-feira, 15 de março de 2018

No fundo aberto

Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso
como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho, 
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícula do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.

António Ramos Rosa
   (1924-2013)

in: Facilidade do Ar
pg
. 53





(...)


Tudo isso desencadeia um efeito de evidência muito próprio desta poesia que, na minha opinião, tem vindo a evoluir na direcção de uma transparência que a tem feito ultrapassar o que seria uma dimensão meramente descritiva, para mergulhar numa dimensão de conhecimento do mundo.
(...)

Fernando Pinto do Amaral


====
Imagem: Desenho de António Ramos Rosa - aqui

16 comentários:

  1. É sempre sedutor e fascinante ler boa poesia como esta que aqui se vai publicando. Muito bom.
    .
    * Se te amar for pecado ... Então sou um Pecador *
    .
    Cumprimentos poéticos

    ResponderEliminar
  2. Querida Olinda, quero confessar que não conheço nada ( que vergonha!!!) da obra de António Ramos Horta e para maior vergonha ainda não me lembro dele. O que me vale é que tenho um Xaile que me " acaricia " e na sua maciez de pura seda aconchega-me e convida-me a conhecer este poeta que usa as palavras como se fossem folhinhas leves e frescas que levadas pelo vento , tentam encontrar as " arvores " que parecem desenhadas nas nuvens do céu. E assim, com essa facilidade em alinhar palavras lá vai construindo belos poemas que nos levam a pensar na importância da poesia nos momentos do nosso dia a dia. Nem todos temos essa capacidade, mas aproveitar a oportunidade de preencher um momento com versos, por mais simples que sejam, é muito importante para a nossa serenidade. E foi um belo momento este, Olinda! Muito obrigada pelo tanto que nos ensinas aqui. Espero que estejam todos bem, apesar destes dias de grande invernia. Um beijinho, amiga!
    Emilia

    ResponderEliminar
  3. Cativante, a poesia deste grande senhor!

    Convidamos-vos a ler o capítulo V do nosso conto escrito a várias mãos "Voar Sem Asas"
    https://contospartilhados.blogspot.pt/2018/03/voar-sem-asas-capitulo-v.html

    Votos de bom fim-de-semana
    Saudações literárias

    ResponderEliminar
  4. "tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar"

    Poesia de uma leveza imaculada a despenhar-se na "sílaba verde" que ao poeta compete (des) ocultar.

    gratificante "o efeito de evidência" que tão bem assinalado.

    abraço, Olinda

    ResponderEliminar
  5. António Ramos Rosa, o meu Poeta por excelência.
    Fico tão feliz quando a sua obra é assim tão ternamente divulgada! Obrigada.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  6. Um belíssimo poema que não conhecia.
    Um abraço e bom fim de semana

    ResponderEliminar
  7. Difícil de interpretar, mas sempre muito humano.
    Gostei de encontrar aqui este poema do poeta algarvio
    que recebeu todos os prémios importantes de poesia...
    Bom fim de semana, Olinda.
    Beijo.
    ~~~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Voltei, reli...
      Senti-me imponderável, flutuando no espaço sideral...
      Abraço, estimada Olinda.
      ~~~

      Eliminar
  8. Palavras plenas de leveza e sentimento que nos fazem quase sentir a caricia do vento.
    Excelente escolha.
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria de
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

    ResponderEliminar
  9. Bom dia Olinda,
    Acho delicioso quando os poetas juntam poesia visual às palavras. Essa imagem confere leveza aos versos fortes.
    Votos de um lindo domingo
    Ruthia

    ResponderEliminar
  10. A sua escrita é sempre uma suavidade temporal; deleite para os olhos e para o espírito.
    Abraço!
    jorege

    ResponderEliminar
  11. Querida Olinda

    Leio, mais uma vez, este poema de Ramos Rosa e subscrevo tudo o que de sublime tenho lido acerca da poesia deste autor. É "um sopro fresco" que queremos muito. E encontramos num "xaile de seda" toques especiais como "No fundo aberto".

    Beijinho.

    ResponderEliminar
  12. Um belo Poema, desenho, pintura...
    As Obras de Arte podem "ler-se" apenas com a Alma.
    Bela escolha.


    Beijo
    SOL

    ResponderEliminar
  13. Que bela sequência de «posts»! Admirável escolha...de um poeta de que muito gosto.
    Afogada que ando em trabalho, este «Xaile de Seda» acolhe-me tão bem!

    Beijo

    ResponderEliminar
  14. Amiga Olinda, obrigada por partilhares com todos mais um belo poema.
    Estamos juntas "na aurícula do coração do mundo".
    Beijo e boa semana.

    ResponderEliminar
  15. Tem vindo a publicar António Ramos Rosa, Poeta que tive a sorte de conhecer pessoalmente e que muito admiro. Ele trata as palavras como se todas lhe pertencessem. Por isso nos apoderamos delas para que nos pertençam também...
    Uma boa semana.
    Um bom dia da Poesia.
    Um beijo.

    ResponderEliminar