sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Nobre povo, Nação valente




Nação pequena que foi maior do que os deuses em geral o permitem, Portugal precisa dessa espécie de delírio manso, desse sonho acordado que, às vezes, se assemelha ao dos videntes (Voyants no sentido de Rimbaud) e, outras, à pura inconsciência, para estar à altura de si mesmo. Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.

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Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:

- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr.Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal.



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Jornal das Letras, mas tendo como fonte "Portugal - identidade e imagem" in "Nós e a Europa ou as duas razões", por Eduardo Lourenço (1988) 
Jornal de Letras, Artes e Ideias / 20030904.
In:Citador
Imagem:daqui

2º texto
Excerto de "A Ilustre Casa de Ramires". Poderá ler este livro aqui

5 comentários:

  1. Fiel retrato de Portugal.

    Saudades do talento para a escrita de Eça de Queirós. Adoro os nossos autores de antigamente. São grandes. Que bom que nos facilita o acesso ao livro. Quando tiver tempo vou aproveitar para ler.

    Bjs

    Isabel Gomes

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  2. ~~~
    ~ Muito pertinentes estes excertos satíricos...

    ~~~~ Bem vinda esta excelente ironia...

    ~~~~~~ Abraço amigo. ~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  3. Muito bom, mais um pouquinho de Portugal.
    Beijos querida.

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  4. Minha amiga hoje venho especialmente para agradecer o carinho da sua mensagem pela morte da minha mãezinha. A amizade é um farol que ilumina com palavras o nosso coração, principalmente quando temos de atravessar as tempestades da vida.
    Muito obrigado pela sua amizade e por me ter acompanhado neste momento, tornando o meu caminho um pouco menos sombrio através das suas palavras.
    Um grande beijinho.
    Maria

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  5. Acho que é das poucas obras de Eça de Queiroz que me falta ler!
    Beijinhos, boa sexta :)

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