segunda-feira, 6 de julho de 2015

A vitória nossa de cada dia



Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe. 
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.


Clarice Lispector
in: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

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Excerto trazido do Citador
Imagem: aqui

12 comentários:

  1. «Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe» - uma frase importante, que devia ser motivo de reflexão para todos nós. Felizmente, há blogues como o seu, que nos lembram o que realmente importa :-)

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  2. Mas que belo texto, Olinda! Nesta frase " falar no que realmente importa é considerado uma gaffe " está retratada com perfeição a sociedade de hoje. A essência das coisas, a essência do ser humano está posta de lado; hoje não se pode ser sincero, honesto,leal; isso está fora de uso; o que importa é ser-se politicamente correcto, bajular tentando assim agradar.
    Olinda, ainda consegui vir cá antes de saír. Espero que estejas bem e daqui a uma semana volto. Até lá, amiga. Beijinhos
    Emília

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  3. Querida amiga

    Clarice
    vivia o que escrevia.
    Por isso fascina...
    Por isso nos fascina...
    E este texto então.
    Verdade intensa,
    que nos faz refletir
    e muitas vezes descobrir,
    que estamos vivendo assim...

    Tua vida me faz feliz...

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  4. ~~~
    ~ ~ ~ Ou
    ~ «A derrota nossa de cada dia»...

    ~~~ Abraço amigo. ~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  5. Admirável a Clarice L.
    Uma pedrada no charco da nossa existência cheia de incompletudes.
    Vive-se em função de uma sociedade que julga, não o que a vida nos pede.
    Belíssimo Olinda
    Beijinho e boa semana

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  6. Uma descrição que não se perdeu no tempo. Clarice Lispector traduziu com clareza e objetividade os comportamentos e os sentimentos que os motivam, nem sempre belos e autênticos. Bjs.

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  7. Pelo sonho é que vamos

    Quase sempre

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  8. Tão verdade tudo isso... A maravilhosa Clarice Lispector!

    Bjs

    Isabel Gomes

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  9. "Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível."
    Tão pertinente! Aliás, está praticamente na ordem do dia falar da falta de amor no mundo! E se é verdade...
    Beijinhos (amorosos!)

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  10. Um texto para ler, reler e reflectir.
    Obrigado pela partilha.
    Olinda, tenha um bom resto de semana.
    Abraço.

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  11. Realmente Clarice Lispector como sempre é admirável nas palavras fazendo nesta, o ser humano cada vez mais esconder seus sentimentos e o que realmente importa é uma gaffe.
    Se não mudarmos isso, o que será da frieza do mundo!
    Beijos querida.

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  12. Olá, Olinda,
    Clarice Lispector a descrever tão bem o ser humano na sua complexidade de sentimentos e emoções, num texto que, se nos dissessem ter sido escrito esta manhã, não poríamos em causa. Não mudamos nada nas últimas décadas.
    Atitudes e obras que escondem quem somos ou, mostram o pior de nós.

    bjn amg

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