domingo, 7 de abril de 2013

A Hora da Estrela

'Amo esta língua', dizia. 'Não é uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe medo. Mas eu gosto de manejá-la - tal como outrora gostava de montar um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a galope'.

Extraí estas palavras da contracapa de Laços de Família, de Clarice Lispector, palavras que lhe são atribuídas. Este livro, que hoje vos trago, é prefaciado por Lídia Jorge, que nele traça o percurso literário e as características desta figura maior da literatura de língua portuguesa. A dado passo e referindo-se a este livro ela escreve:

'Laços de Família, obra com que na prática se inicia a publicação da Clarice Lispector entre nós, é um conjunto de treze contos surgidos no Brasil em 1960, e contêm alguns dos traços que esse género costuma ter. Tem personagens, tem aventura, acidentes e desfechos. Só que neles, tanto quanto nos romances, os personagens começando por ser comuns, logo se revelam incomuns, avançando como se não tivessem olhos para ver, e quando quisessem ouvir não tivessem ouvidos. Ou inversamente, se têm ouvidos não têm sons, e se têm olhos não há paisagem que se veja. Quando acontece a coincidência, e é por escassos instantes, a visão produz-se, dá-se a fulminação e a matéria ficcional sucede.'

Lídia Jorge evoca Sartre e La Nausée quando fala de Laços de Família, referindo-se sobretudo ao conto Amor de 'leitura obrigatória para quem se inicie na compreensão do processo epifânico de Clarice'. Mas é do conto Uma  Galinha que transcrevo as seguintes passagens, da página 28:

'Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista.'
'Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência.'
'Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração tão pequeno num prato solevava e abaixava as penas enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desenvencilhar-se do acontecimento despregou-se do chão e saiu aos gritos: 
- Mamãe, mamãe, não mate a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!'

Pois bem, 'A Hora da Estrela' é o nome da Exposição dedicada a Clarice Lispector na Fundação Calouste Gulbenkian, e que decorre de 5/Abril a 23/ Junho de 2013, no âmbito das comemorações do Ano do Brasil em Portugal. Vem anunciada assim:


Como não podia deixar de ser, estarei entre os visitantes um dia destes!

12 comentários:

  1. Olinda, Olinda, minha tão querida amiga, Olinda, nem imaginas como exulto de alegria ao ler este poste... Clarice tem em mim o mesmo lugar que ocupa João Cabral! E A Hora da Estrela, me é tão familiar (como toda a sua obra, que tenho o privilégio de ter e de ter lido quase toda, quase!) conta um pouco da Macabea que há em toda mulher nordestina, brasileira, sonhadora (como eu), e que nos convida a buscarmos e não desistirmos dos nossos sonhos, do nosso protagonismo, de sermos senhoras do que queremos e desejamos. Clarice nos sacode para a vida, para não deixarmos de viver nenhum momento, e não pensarmos que apenas no tapete vermelho da fama, do estrelismo, podemos ser estrelas, somos estrelas todos os dias, nessa grande labuta e ofício que é viver num mundo cheio de padrões e temos a coragem de rompê-los, transformá-los! Salvo engano foi seu último romance publicado em vida, virou filme e a Marcela Cartaxo, uma atriz paraibana, incorporou fantasticamente a personagem da trama, inclusive ganhadora do prêmio, Urso de Prata, no Festival de Cinema de Berlim, por esse filme... Desejo que todas nós mulheres brasileiras, portuguesas, do mundo todo, tenhamos todos os dias, horas e horas de estrelas, porque merecemos, por todo nosso legado à história da humanidade...

    Estou feliz demais por sua publicação!

    Deixo aqui o link do filme: e: http://www.youtube.com/watch?v=376JgN-2cEc

    Beijo, obrigada e depois nos diga sua impressão acerca da exposição?

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  2. Lindo Olinda!
    Clarice tem o encanto das divas preciosas.

    Beijão amiga

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  3. Pois é, Olinda, se lá tem ido este sábado, tínhamo-nos encontrado. Acabei agora mesmo de escrever sobre isso e de mostrar fotografias da exposição. Vale muito a pena. Adorei!

    Beijinhos!

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  4. - Mamãe, mamãe, não mate a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!'
    Oi Olinda.
    Este trecho foi muito interessante, pois mostra o quanto a criança foi sensível, num mundo de adultos tão preocupados em murmurarem, em ofuscarem sentimentos e amor.
    Esta escritora soube captar esses sentimentos.
    Seus sentimentos também atravessam o tempo através das letras, e está entre nós latentes.
    Um abraço.
    Beijos.

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  5. Que óptima ideia este louvor à Língua na memória de uma das suas melhores cultoras! E,como de costume, apresentado com muito cuidado e rigor.

    Já faz uns meses que não entro na Gulbenkian, mas vou aproveitar a sugestão. Obrigada pela partilha, eu nem sabia do evento. Digo isto com vergonha, pois desde que a vida de trabalho assim ficou...perdi muito mais que vencimento.

    Beijinho

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  6. A Clarice foi uma grande escritora.
    Ainda que no século passado tivesse sido pouco divulgada em Portugal.
    Olinda, minha querida amiga, tem uma boa semana.
    Beijo.

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  7. Olinda, útil esta divulgação! Já li vagamente sobre Clarice Lispector, mas ainda não li nada dela: vai para a minha lista!
    Beijinhos, boa semana!
    Madalena

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  8. Este ano estou a retomar as minhas leituras, hábito que perdi há... nem digo há quanto tempo... Vou trazer a Clarice para casa quando for às compras!
    Beijinhos, boa segunda!

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  9. Gosto muito de Clarice Lispector. As suas personagens e os seus pensamentos dizem mais do que nós conseguimos traduzir em palavras

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  10. Conheço muito pouco da obra de Clarice Linspector, mas do que conheço, gosto muito. Não sei se te disse, mas eu estive em Lisboa no dia em que começou o ano do Brasil em Portugal. Conheci o fernando Veríssimo que estava na feira de livros lusófonos e fui lá pedir-lhe um autógrafo no livro que comprei. depois vi vários shows musicais com cantores brasileiros e portugueses. Adorei! Desta vez talvez não vá, mas , mas...dado que é durante muito tempo quem sabe? Não percas, Olinda, pois vais gostar de certeza. Um beijinho e boa noite!
    Emília

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