Erguendo o mais alto que podia, com o braço esquerdo, centenas de páginas inquietas, com o outro alcançou o mastro que, agora separado, muito longe já do corpo destroçado do navio, se segurava à superfície das águas. Luís amarrou-se ao grande tronco e repousava, por um segundo, o peito cansado, mas Dinamene ameaçava tornar-se um ponto negro perdido na espuma.
Com um braço no ar e outro a nadar, como contaria, depois, o seu povo, arrastou-se por entre as ondas - o rio acalmado, pensou - mas a ilusão de Luís nada poderia constituir, na realidade, e o que história haveria de contar seria que não era ainda chegada a hora do perdão. E as ondas levantar-se-iam. O vento continuaria a assobiar por entre os estertores. Dinamene já não suportaria muito mais vida, a sua doçura não resistiria muito mais à agressividade.
E Luís nadava, avançava lentamente e em rodopio, enquanto uma ideia não lhe abandonava a cabeça: "Se eu deixasse o manuscrito, se rendesse este livro às ondas, nadaria, com certeza, mais depressa." O seu punho ora se tornava mais lasso, ora cravava as unhas no papel, o olhar permanecia envidraçado, o corpo já não sentia a dor.
A pele do rosto de Dinamene ficara ainda mais pálida e ela estava longe, longe, cada vez mais longe e mais impossível para o poeta. Parecia que aceitava o seu destino. Que ninguém pudesse ser maior que o amor - ela sabia que, se se deixasse salvar, ele seria forçado a abandonar a sua obra à ira do Mecom, para nada, para sempre.
Quando o vento desceu e o rio, por fim, cedeu ao cansaço, Luís nadava longe, arfante, mecânico no rodar do único braço livre, a movimentos curtos e compassados, incapaz de pensar o que quer que fosse. Muito, muito atrás, já separados pela corrente, pedaços da barca boiando, vindo, aqui e ali, à tona, como no fim de um banquete.
Todos os tripulantes, todos os passageiros, todos os condenados e cada um dos animais dançavam, entre as algas, em silêncio, por sob os escombros, como se aqueles fossem cruzes de um cemitério inventado à presa, inútil para honrar a memória de uma ninfa que a rebentação de nenhum rio poderia arrancar à terra.
Os primeiros esgares da aurora raiavam de azul e laranja o céu; transpirando em febre, Luís dava à costa - parecia que tinha acabado de cruzar o universo inteiro. Ainda na posse dos sentidos, compreendia que estava vivo e que o manuscrito repousava, deitado, a seu lado.
Excerto: 10 histórias de amor em Portugal, de Alexandre Borges, pgs.32/33/34.
Dinamene sacrifica-se pelo manuscrito?
"ela sabia que, se se deixasse salvar, ele seria forçado a
abandonar a sua obra à ira do Mecom, para nada, para sempre".
Entre ela e a obra, como escolher?
Um dilema para o poeta...
Abraços
Olinda
Continua...
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.Título da história: Dinamene e Luís de Camões
.Subtítulo: O nome sepultado nas águas (que usei como título do post)
.Comemoração, neste ano, dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões
Continuo a acompanhar a história.
ResponderEliminarUm abraço.
Muito obrigada pela presença.
EliminarUm abraço.
Olá, querida amiga Olinda!
ResponderEliminar"Que ninguém pudesse ser maior que o Amor"...
Grande Verdade na mensagem da história.
Uma coisa me chamou muita atenção: o alívio que Luís sentiu ao ver o manuscrito são e salvo a seu lado.
Fiquei daqui imaginando o quanto não lutamos por algo ou alguém que amamos. Damos até o último sopro de vida. Enfrentamos naufrágios e outros.
História forte.
Tenha dias abençoados!
Beijinhos com carinho fraterno
É, querida Rosélia.
EliminarNota-se que o manuscrito era precioso para ele. Lutou por ele com todas as forças.
Quando temos apreço por algo ou alguém estamos dispostos a todos os sacrifícios.
Beijinhos.
Me pareció un relato interesante. Te mando un beso.,
ResponderEliminarMuito obrigada pelo comentário.
EliminarBeijos.
Bom dia Olinda,
ResponderEliminarUma perfeita narrativa de todo o dramatismo que envolveu Camões para salvar o seu manuscrito dos Lusíadas!
Salvaram-se ele e a obra depois de uma luta que parecia não ter fim.
Excelente narrativa esta de Alexandre Borges.
Beijinhos e um ótimo dia.
Emília
Olá, Emília
EliminarVimos da escola a saber isso, é verdade? Nesta narrativa temos a comprovação desse facto.
No meio da tempestade não se poupou a esforços. Até quase perder as forças.
Beijinhos
Mais um belo excerto aqui,Olinda! Ótimo dia! beijos, chica
ResponderEliminarMuito obrigada pelo comentário.
EliminarBeijinhos, Chica.
O Amor tudo vence!
ResponderEliminarAbraço
Grata pelo comentário, Rosa dos Ventos.
EliminarAbraço.
Um grande e dramático dilema teve que viver Camões, ou salvar Dinameme, ou salvar o manuscrito. E naturalmente, salvou o manuscrito, que era sem dúvida o seu grande amor.
ResponderEliminarEsperemos para ver, com acaba esta interessante história de Alexandre Borges.
Continuação de feliz dia, e ótimo fim de semana, amiga Olinda!
Beijinhos.
Mário Margaride
http://poesiaaquiesta.blogspot.com
https://soltastuaspalavras.blogspot.com
Olá, Caro Mário
EliminarO dilema do poeta: dois amores ali em presença, no meio do temporal, a embarcação desfeita, sem ter a que se agarrar..
Boa continuação também lhe desejo.
Abraço
E penso: no tempo em que Camões fazia parte do nosso curriculum , nunca me equacinaram esta situação. Amor , Manuscrito. Mas dá mais que pensar, não é tão linear assim. Que belo Post, querida Olinda!. Beijinho
ResponderEliminarQuerida Manuela
EliminarÉ mesmo. Nunca nos apresentaram esse problema de duas faces com que Camões tivera de se debater.
Dá que pensar e na interpretação dos factos ou da lenda ficamos também divididos...
Beijinhos.
Adorei ler minha querida amiga, Olinda!
ResponderEliminarUma noite abençoada!
Um beijinho iluminado!
😍 😃😍 Megy Maia
Olá, Megy
EliminarObrigada pelo comentário.
Também lhe desejo um dia feliz.
Beijinhos.
Olá, querida Olinda. Um texto envolvente, gostei de ler. A última frase me fez refletir: "Ainda na posse dos sentidos, compreendia que estava vivo e que o manuscrito repousava, deitado, ao seu lado." Há vida e grande esperança!
ResponderEliminarBjs. Bom fdsemana...
Querida Anete
EliminarContente por estar aqui nesta mistura de sentimentos que está narrativa nos oferece.
Muito obrigada.
Beijinhos.
corrigindo:
Eliminar...esta narrativa...
À espera do próximo capitulo!
ResponderEliminarIsabel Sá
Brilhos da Moda
Muito obrigada.
EliminarBeijo.