sexta-feira, 28 de julho de 2023

Rumor dos Fogos

hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos...

dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhais

não quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir... o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar

ficou-me esta mão com sua sombra de terra
sobre o papel branco... como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas

Al Berto, 
in 'O Medo'


Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997), 
foi um poeta, pintor, editor e animador cultural português.

O Medo, uma antologia do seu trabalho desde 1974 a 1986, é editado pela primeira vez em 1987. Este veio a tornar-se no trabalho mais importante da sua obra e o seu definitivo testemunho artístico, sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte.




Bom fim de semana, amigos.
Abraços 
Olinda


===
Poema: Citador
Imagem: pixabay

16 comentários:

  1. "o receio
    de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
    e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar"

    Olá, querida amiga Olinda!
    É o receio meu também. Uno-me aos versos tão sentidos...
    Um autor que não conhecia.
    Obrigada pela partilha.
    Tenha dias abençoados!
    Beijinhos

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  2. Es un hermoso poema que te invita a reflexionar. Te mando un beso.

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  3. Poema lindo e tu sempre escolhes muito bem! Gostei muito!
    beijos, lindo fim de semana! chica

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  4. Que coincidência: ainda ontem li este poema porque ando a reler o Al Berto. É um poeta que diz tanta coisa que eu gostaria de ter dito. É maravilhoso!
    Obrigada por trazê-lo aqui, ao seu espaço.
    Um bom fim de semana.
    Um beijo.

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  5. " a tristeza antiga das lágrimas" a poesia também é isso.
    Um abraço.

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  6. "[...] o receio
    de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei[...]" e as palavras não dizerem o real sentimento...
    Pois. Há muitas frases que ficaram paradas no tempo ou silenciadas por ele.
    Magistral! Gostaria de saber dizer o meu real sentimento, com esta clareza.
    Obrigado, Olinda.


    Beijo
    SOL da Esteva

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  7. Uma excelente partilha, querida Olinda
    Tenha um ótimo domingo.
    Um beijinho
    Verena.

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  8. Não conhecia e fiquei encantada.
    Obrigado pela partilha.
    Beijinhos

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  9. Querida Olinda,
    gosto tanto deste poeta que o sistema educativo insiste em esquecer!
    É bom tentar voltar e encontrá-lo aqui.
    Beijinho

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  10. E pensar que as insônias ainda rondam 'os meus trinta e cinco anos 'e certamente as paisagens continuam a ser palco dos mais trinta e poucos.
    Belíssima escolha, Olívia como só o poeta Al Berto é capaz de fazer verter lágrimas diante desses rumores de corpo inteiro.
    Um abraço e boa semana .

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  11. Foi um grande poeta.
    Que anda meio esquecido.
    Daí que esta sua lembrança/homenagem seja de louvar.
    Boa semana, cara amiga Olinda.
    Um abraço.

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  12. Adorei reler, pois me diz tanto.
    Mais uma escolha excelente, o que me dá a certeza de que quando aqui venho invisto em bons momentos de poesia e leitura. Grande Al Berto, apesar de tão pouco reconhecido, tanto que nos deu.
    Bom Agosto, repleto de saúde, boa disposição, alegrias, leituras, saber e cultura.
    Kandando com amizade

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  13. Olá querida Olinda!
    Grata pelo teu comentário, aproveito para te dizer que estou bem e feliz. Acabei de regressar de Porto Santo, para onde fomos com a neta Carolina. Os três pela primeira vez, umas férias inesquecíveis,
    A pausa é para manter, apesar da saudade. Eu volto.
    Beijo, um excelente Agosto para ti e para os teus. 🌼🌷🌹🌺

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  14. Amiga Olinda,
    Existem citações deste genial artista português no ®DOUG BLOG.
    Quase três décadas depois de sua morte, ele foi ficando esquecido, mas, aqui está sendo lembrado e isso bafeja à chama, pois, assim é a cultura, gira em movimentos cíclicos.

    “Amanhã, ou enquanto dormes, vou pensar em ti!”
    °°°
    “Visite-me enquanto não envelheço!” - (Al Berto)

    Um bom começo de agosto para ti.
    Abraços!!!

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  15. Excelente texto poético evocativo de todo um passado que, naturalmente, deixou indeléveis marcas.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

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