segunda-feira, 5 de junho de 2023

Dádiva e dívida...


_Tua mãe disse que, se tivesse desconfiado que era para político, 
nuncamente jamais do mundo em nenhum tempo 
na vida te teria posto na escola,*






Vai à cozinha devolver a chávena. Encontra sua sogra, Dona Alice, a chorar acidamente diante de uma cepa de cebola para a canja, faz-lhe a piada habitual, como vai Alice no País das Buganvílias?, ela, De saúde, graças a Deus, passa, vai lavar a xícara no alguidar ao lado, despede-se e sai. O cheiro do refogado acompanha-o, lembra-lhe os perfumes das casinhas onde morou com a mãe em Cabo Verde, o lírio do vaso do quintal, os coentros apolejados sobre o xerém, a erva-cidreira mascada à boquinha da tarde, o funcho pisado no almofariz de pedra, a hortelã vaporizando ao lume, o manjericão raspado pelas cortinas das janelas, o orégão e o alecrim em borbulhas de cozimento, o zimbro e evolar-se do litro, as folhas de louro penduradas no espeto, a manjerona doida no travesseiro, a arruda queimada com aguardente, o eucalipto para afugentar as bruxas, o tomilho ardido para curar o peito fechado, a alfazema em unguento sobre a ferida da canela, a erva-príncipe elegante e fresca na mureta do pote; ah, o jasmim, o rosmaninho, a salsa, o poejo, a noz-mocada, o alho, e o café, outra vez o café, que teima na língua como amargor de último dia. Saudade desalmada de tudo isso, e a triste sensação de que ele, Amílcar, é para sua mãe o filho que ela tem e quase não tem, teve e nunca teve, ou coisa assim, delicada de explicar, uma mistura de dádiva e dívida, ou talvez aquilo que em África se designa por parir para servir o mundo. Afinal, ele, Homem Grande, nunca deu à mãe a vida melhor que tantas vezes pronunciou à luz do candeeiro sobre a juntoura, nas suas humildes casas de uma porta e uma janela.

 Pgs 59/60



Com o tempo, de tanto passar a ferro, Mãe Iva adquiriu umas cãibras que lhe deixavam o corpo como ouriceiro atiçado, e ele, Amílcar, catorzeanino ainda, acordava nas madrugadas para esfregar-lhe cânfora e óleo de purga nas costas, porque suas mãos pequenas e macias acalmavam, dizia-lhe a mãe. Depois da terapia ele, Amílcar, estendia-se noctâmbulo a contemplar a imagem de Santo António a dançar na flâmula do candeeiro por entre as fraldas da cortina; filosofava  com a moringa transpirada  em cima da janela; hauria o cravinho-da-índia que vinha da tigela de comida para o dia seguinte; arpejava à distância as tiras das cadeiras de mogno da casa de jantar; alucinava-se com o torresmo e o peixe frito nas montras da vitrine; catava o som aleatório dos insectos voadores; divertia-se com a rênquea de garrafas vazias e seus pescoços elegantes em cima da mesinha; ria do pote bojudo feito um bispo no canto da sala; distraía-se a destrinçar os vestidos das gémeas nos cabides; e vogava madrugada adentro, consoante a ondulação da chama a fritar os bichos de luz em cima da banquinha da cabeceira. Amanhecia.

Pg 70



E lembra o dia que Mãe Iva apareceu na Achada Falcão, sem aviso nem licença, para resgatar suas crias do pai e da madrasta. Juvenal nem sabia que Mãe Iva tinha deixado a Guiné, e ficou empedrado na porta a olhar a pessoa desconhecida que roçava as crianças num anúncio de temporal...

pg 60

A casinha de Ponta Belém, na cidade da Praia, para onde foram morar, era como um agasalho de pedra. Chegaram à noite, lembra, vencidos de oitenta quilómetros e sete horas de mulas. Mãe Iva sentou-se com as gualdrapas da saia arrepanhadas entre as pernas, mandou as crianças acomodarem-se no chão, não tinha móveis, penintenciou-se pela demora em vir ao encontro de seus filhos, percalços, e assegurou:

_Podem crer que, deusadiante, só a morte nos separará...

Pg 61

Era Setembro, lembra, Mãe Iva cozeu o bolo de mandioca, fincou-lhe em cima uma vela de Igreja, confeccionou uma pucarinha de água de açúcar, chamou os amiguinhos e as amiguinhas recentes da cidade, e fez a um dos filhos a sua primeira festa de aniversário. Foi para ele, Amílcar: dez anos de vida. Nunca mais se esquece. Em Outubro, Mãe Iva vendeu e colocou em penhor todos os seus valores, de brincos a roupa de cama, costurou um par de uniformes, remendou umas meias furadas, levou à forma os sapatos e, numa manhã cacimbada de cânticos de pássaros, acordou seus dois rapazitos, Ivo e Amílcar, lavou-os e levou-os para a primeira chamada à escolinha da cidade, rogando-lhes pelo caminho: "Estudem, especialmente tu, Amílcar, para não perderes acesso ao liceu, lembra-te que é até os treze anos". Ele, Amílcar, obediente e compromissado, cursou em três anos os quatro requeridos e terminou a quarta classe da instrução primária com a idade de doze anos, dez meses e dezassete dias. Mãe Iva ficou tão enaltecida que deu aos dois rapazes dois meses inteiros e o mundo inteiro para brincarem...

Pg 62




Um dia, nada te faltará, mamãe...

Mãe Iva só lhe devolveu a resposta trinta e seis anos depois, por intermédio de um amigo, que lhe fora levar de presente do filho uma notícia e um rosário. *

Pg 63

Trinta e seis anos depois, com quatro meses de diferença apenas, acorda de um apagão e percebe que uma bala acaba de lhe furar o ventre, e alfineta-lhe tanto a barriga como a memória, replicando todas as picadas de agulha de quando Mãe Iva às pressas lhe franzia as pregas das calças no corpo. Era uma casinha em São Vicente, moradia igualmente de uma porta  e uma janela, ambas de batentes flácidos e dobradiças ronhas,...

Pg 67


Onde é que eu estou?,
pergunta à Lua.

O simples pronunciar já lhe dói impiedosamente. Está coberto de uma coagulação arrefecida e pastosa, sente uma pérola de suor a escorrer-lhe sob a gola direita, e seu fígado late como um vulcãozinho de estimação. A custo golfa um soluço de dor, tosse partindo todas as costelas, tendões e músculos, e resmunga com dificuldade:

_Deram-me um tiro

Pg 181


====


Ele, Amílcar, Homem Grande, sabe que depois da sua morte persistiria a pergunta sem resposta cabal:

Quem matou Amílcar Cabral?

E Mãe Iva, no funeral, apenas o espírito. Não o corpo.
Pariu um filho para servir o mundo.


===

Excertos de:

A última Lua de Homem Grande, Mário Lúcio Sousa

Edição 2022 - Prémio Leya


32 comentários:

  1. Parece un buen libro por lo que nos pusiste. Te mando un beso.

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    1. Estou a gostar muito.
      Obrigada, JP. Alexander.
      Um.beso
      Olinda

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  2. Fico a aguardar o desenvolvimento. Boa semana!
    Isabel Sá
    Brilhos da Moda

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  3. Gostei do "aperitivo"...Parece bom! Promete!
    Linda semana, beijos, chica

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    1. Sim, promete, Chica.
      Talvez não traga tudo o que livro tem para nos oferecer.
      Mas alguma coisa será :)
      Beijinhos
      Olinda

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  4. Não li este livro, mas deve ser muito interessante, a julgar pelo delicioso excerto que partilhou.
    Boa semana.
    Um beijo.

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    1. Pode crer, Jaime. O excerto é apenas um dos muitos aspectos interessantes :)
      Beijo
      Olinda

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  5. Imagino ser um livro encantador de ler... e se mete sogras...ai Jesus.
    *
    Semana com Saúde, Paz e Amor.
    */*

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    1. Oh, coitadas das sogras :))
      Neste particular não metem prego nem estopa...
      Semana boa.
      Olinda

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  6. Obrigada pela sugestão. Adoro uma boa prosa, cheia de coisas do dia a dia e doa afectos da família. Deve ser um livro maravilhoso.
    Tudo de bom, minha Amiga Olinda.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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    1. Muito, muito afecto nos deixa entrever este excerto.
      Penso que sim. É um livro que traz uma marca muito especial.
      Beijinhos, querida Graça.
      Olinda

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  7. gostei de ler o texto, os cheiros e os sabores são maravilhosamente
    reais na nossa imaginação:)
    vou escutar a música!

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    1. Cheiros e sabores que nos lembram o ninho materno.
      Beijo
      Olinda

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  8. Olá, querida amiga Olinda!
    Por aqui há sol gostoso...
    Ler seu post, ouvir e ver o vídeo é bom demais.
    Creio que toda dádiva já contém explícita uma dívida... não monetária, necessariamente, mas de cumplicidade e gratidão...
    Sempre tive o sonho de conhecer a África e quase se realizou em 2012, em missão com uma religiosa.
    Com suas postagens, muito me enriqueço com seus conhecimentos.
    As mulheres são intensas como deveríamos todas ser. Sangue nos olhos para promover o bem e a paz, bem como o ardor fraterno e solidariedade.
    Fêmea no sentido literal e conotativo.
    O mundo carece de nossas dívidas acumuladas.
    Ele nos oferta tantas dádivas.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Beijinhos

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    1. Olá, querida Rosélia
      Muito obrigada pelas belas palavras de apreço.
      Eneida Marta, cantora guineense, interpreta as suas
      canções com alma. Nesta fala de "fidju fema", modo
      de designar "filha", nos crioulos da Guiné-Bissau e
      Cabo Verde.
      Continuarei com mais alguns apontamentos este
      post.
      Beijinhos
      Olinda

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  9. Um pedacinho a cheirar a ervas aromáticas!

    Abraço

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  10. É um texto sugestivo e apelativo, que gostei de ler.
    Não conhecia o autor e agradeço a partilha.
    Abraço de amizade.
    Juvenal Nunes

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    1. Olá Juvenal
      Um texto que nos fala que cheiros e sabores
      que conhecemos muito bem. Em especial
      na casa da nossa infância.
      Outro abraço
      Olinda

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  11. Muito interessante Olinda.
    Convida a acompanhar por aqui mas não só.
    Grato por nos ofertar estes bons pedacinhos no Xaile de Seda.
    Um kandando

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    1. Olá, Guma
      Também lhe agradeço a sua presença, aqui,
      no Xaile de Seda.
      Do livro penso extrair pequenas passagens
      para falar um pouco de alguém que está sempre
      presente nas suas páginas.
      Um abraço
      Olinda

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  12. Despertou-me a curiosidade.
    Beijinhos

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    1. Grata. Desde o seu início que se sente essa vontade
      de avançar para saber mais.
      Beijinhos
      Olinda

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  13. Bom dia Olinda,
    O livro deve ser maravilhoso, daqueles que se começam a ler e com sofreguidão vamos até ao fim.
    Muito obrigada por partilhar e fico a aguardar mais...
    Beijinhos e bom feriado.
    Ailime

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    1. Olá, cara Ailime
      Na verdade, é um livro que, fugindo às biografias tout court, nos entusiasma de forma a lê-lo precisamente como diz.
      Bom feriado.
      Beijinhos
      Olinda

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  14. Passei para ver as novidades.
    Aproveito para lhe desejar um bom feriado e a continuação de uma boa semana.
    Um beijo.

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    1. Olá, Jaime
      Inseri mais um bocadinho das minhas leituras do referido livro.
      Mas já não falta muito para acabar o post :)
      Bom feriado.
      Um beijo
      Olinda

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  15. Enternecedor este texto tirado do livro que estás a ler e que comprarei logo que possivel. Eu sei que " pari os filhos para o mundo ", mas ficaria muito triste se nesse mundo deles estivesse incluida a política. Felizmente, não! Querida Amiga, a minha volta ao Começar de novo está próxima. Amanhã o meu irmão volta ao Brasil, infelizmente para mim, felizmente para eles pois as saudades começam a apertar; é lá que está a vida deles. Um bom fim de semana e obrigada por me dares a conhecer este livro que, de certeza, vai agradar-me muito. Também gostei bastante da música Beijinhos e saúde para todos
    Emilia

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    1. Querida Emília
      Muito obrigada pela tua presença e comentário.
      Tens razão, é lá que eles têm a vida deles.
      Esperamos-te com ansiedade no "Começar de Novo", mas sem
      pressão :)
      Desejo-te um bom fim de semana.
      Beijinhos
      Olinda

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