O rei começou a criar cobiça suplementar. Tinha ouro, prata, cobre, vindos das Índias e das Américas. Muitas outras riquezas. Mas queria mais. Insaciável. Como se pudesse engolir os metais e os diamantes e os rubis e as esmeraldas. Uma fome desesperada se apossara da Europa e a Espanha, ingerido Portugal, era a encruzilhada de todos os caminhos brilhantes da riqueza. No meio da encruzilhada estava ele, o trono de Filipe, de ouro e marfim sobre pernas de ébano, refulgindo com diamantes e esmeraldas. Junto ao chão, nas pernas, estava o ébano. Esse até chicote merecia, por ter cor de carvão, e grilhetas nos pés.
Todos os reis se pareciam, este não seria pois indiferente às miragens agitadas à frente dos cornos, como aos toiros o pano vermelho. Cerveira Pereira soube brandir muito bem o cobre, o marfim e os escravos de Benguela para o tourear. E o rei ficou fascinado por esse homem de aspecto ascético, magro e sempre de negro, uma barba afilada já com cãs e voz de flauta sonhando e fazendo sonhar com paraísos desconhecidos, cursos de água torrenciais, levando não só lama mas também brilhantes, florestas maiores e muito mais altas que as da Península Ibérica de árvores de madeira preciosa cheirando a sândalo alfazema manjerico canela e todos os perfumes inventados pelo homem madeiras dignas dos móveis mais magnificentes e das esculturas de fino talhe e climas benignos todo o ano em que não eram necessárias roupas e só por pudor cristão as usavam e a terra tão nutrida que semente aí caída germinava mais depressa e alcançava produções nunca vistas e o mar oh o que dizer do mar onde abundavam peixes do tamanho de baleias mas saborosíssimos mansos de apanhar quase pedindo licença para serem pescados e logo assados que morriam de prazer de ser devorados pelos novos deuses vindos da desgastada Europa sem falar nas pessoas estúpidas ignorantes ingénuas se deixando kanzar com a maior facilidade e incapazes de combater dóceis crianças competentes no entanto de trabalhar em todas as tarefas pesadas sem se queixarem sem se rebelarem aceitando de boa mente o destino que os padres lhes indicavam como sendo o da salvação.
O espanto é o rei, farto de discursos semelhantes, ter acreditado nele e na flauta da sua música.
Sempre há reis incautos.
Em 1612 estava tomada a decisão de enviar Manuel Cerveira Pereira conquistar o território ao sul do Kuanza, explorar o cobre, sem esquecer o melhor produto, o escravo.
Pepetela, in: A Sul. O Sombreiro - pgs 164/165
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Pepetela surpreendeu-me com este livro. Muito diferente de "Yaka" de que apresentei aqui excertos, parafraseando-os. E de outros que já li. É que neste romance histórico ele vai buscar assunto a fontes escritas, adoptando o raciocínio dos personagens, a forma como se movimentam, como lêem o ambiente do seu tempo.
E para mais aparecem individualidades reais, como Manuel Cerveira Pereira, que fazem por sobreviver, manejando o poder, manipulando para alcançar os seus objectivos. Ouvimos falar de Luanda, do reino de Benguela que urge conquistar, dos jagas, dos reis, dos sobas, dos enviados do Reino, dos conquistadores, dos jesuitas, dos franciscanos, com papéis muito importantes nesse palco onde se desenrola a implantação de Portugal bem como interesses de outros países da Europa. E onde tudo é permitido.
Com poucos recursos e poucos homens. Estamos no século XVII, no tempo dos Filipes. O fito é trazer o que houver, para aumentar o pecúlio dos que governam, desfiando cordelinhos e intrigas.
Tenham um dia bom, meus amigos.
Abraços
Olinda
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Kanzar - a partir do kimbundu ku-kanza= saquear
Pepetela -Artur Carlos Mauricio Pestana Dos santos -hace un documentado ensayo en su libro Yaca donde la aventura historica y la conjunción entre dos mundos America y Europa nos lleva con gran interés dandole un tratamiento romantico y muy interesante ,Olinda gracias por compartirlo con todos ,muy bonita la canción de musica tradicional de Angola ..., Olinda feliz fin de semana y un fuerte abrazo . jr.
ResponderEliminarOlá, Jose
EliminarBom dia
Em "YaKa", Pepetela fala de uma família de portugueses radicada em Angola, que passa, com os seus descendentes, pela fase de colonos e, posteriormente, de quase integração na cultura angolana, vivendo a guerra de libertação com todas as perplexidades que ela lhes haveria de trazer...
Neste, "A Sul. O Sombreiro", temos outro estilo, situa-se no século XVII, no tempo em que Espanha anexara Portugal. Mas, segundo ele, o processo é o mesmo sejam quais forem os reis e os actores que os rodeiam.
Grata, amigo, pelo comentário.
Abraço
Olinda
Muito interessante esta publicação. Obrigada pela partilha!
ResponderEliminar-
No aroma mais belo, e perspicaz
Beijos, e uma excelente tarde.
Muito obrigada, amiga Cidália, pela visita e comentário.
EliminarBeijinhos
Olinda
Suas postagens são ricas porque nos traz a história e ótimas sugestões para leitura. Proporciona-nos alargar horizontes com novos conhecimentos. Gostei do vídeo. Ele me faz imaginar os gingados do ritmo. Grande abraço.
ResponderEliminarQuerida Marilene
EliminarGrata pelas suas palavras de apreço.
Vou trazendo alguns autores da lusofonia. Não esquecer é preciso.
Também gostei deste video. Traz-nos sons por vezes esquecidos.
Beijinhos
Olinda
Depois de ler este texto de Pepetela, fiquei cheia de vontade de ler o livro. Vou tentar encontrá-lo. Sempre excelente passar por aqui, minha Amiga Olinda.
ResponderEliminarTudo de bom para si.
Um beijo.
Querida Graça
EliminarÉ um livro agradável de se ler apesar do tema.
Foi-me emprestado por uma amiga. Entretanto,
perdi-o. Andei à procura dele até que o encontrei.
Um sufoco. O problema é que estava autografado
pelo autor...
Obrigada pela visita e comentário, minha amiga.
Beijinhos
Olinda
Bom dia de sábado, querida amiga Olinda!
ResponderEliminarNão conhecia o renomado escritor digno do prêmio Camões. Agradeço a partilha cultural.
Começando a ler, percebe-se a História bem presente e a ganância também peculiar nas conquistas dos 'descobrimentos'.
Pobres crianças... Verdade!
Conheci um pouco de tantos erros cometidos pela Igreja.
Enfim, você se reveste de fundamentada cultura e ainda partilha conosco. Obrigada, amiga
Tenha um final de semana abençoado!
Beijinhos com carinho de gratidão e estima
😘🕊️💙💐
Olá, querida amiga!
EliminarVoltei para lhe agradecer sua linda participação no Entusiasmo Azul , adorei.
Beijinhos
😘😘
Querida amiga Rosélia
EliminarTempos em que os mais equipados faziam tudo para se apoderarem
do que não lhes pertencia. Pelo poder das armas, em desrespeito pela cultura dos outros e pelo direito à terra.
Infelizmente, no presente acontecem coisas dessas, impensáveis, tendo em conta o estádio da nossa civilização. Aqui tão perto, decorre a guerra na Ucrânia que nos inunda de horror.
Minha amiga, eu é que lhe agradeço os temas com que nos desafia,
sempre de muito interesse.
Beijinhos
Olinda
Uma excelente "mostra" do Livro de Pepetela. O tema também é favorável á perpectualização do texto. Mágica a música Angolana.
ResponderEliminarGrato por destacares, Olinda.
Beijo
SOL da Esteva
Muito obrigada, Sol da Esteva, pela presença e comentário.
EliminarPor mais tempo que passe a exploração do homem pelo homem parece não conhecer um fim. Qualquer que seja a latitude.
Abraço
Olinda
Olá Olinda :)
ResponderEliminarUma excelente partilha.
" Conheci" Pepetela através da minha filhota mais velha :)
o primeiro foi O Quase Fim do Mundo. Adorei
Depois a Geração da Utopia, não gostei tanto, achei um livro muito sem esperança, muito desencantado.
O Sombreiro nunca li,estive para comprar, mas acabei por optar por um de Zafon.
Agora fiquei com vontade .)
Brisas doces***
Parapeito?
EliminarPelas "Brisas doces", penso que sim :)
Obrigada por trazer mais informações sobre a escrita de Pepetela.
Zafon, grande autor espanhol. "A sombra do vento", por exemplo, é
um livro apaixonante.
Beijinhos
Olinda
Gostei muito do autor que não conhecia, ele tem um jeito curioso de escrever, alguns textos longo e sem pontuações. Ótima tua postagem que permite que se aprenda sempre um pouco mais por aqui. Beijos ;)
ResponderEliminarhttps://costuraerasga.blogspot.com/
Olá, Jeanne
EliminarNeste excerto realmente nota-se falta de vírgulas e frases longas. Talvez para dar noção da sofreguidão do tema que descreve. Em outros livros de Pepetela que já li, a escrita decorre "normalmente" :)
Grata, minha amiga, pela visita e comentário.
Beijos
Olinda
O livro parece ser muito interessante. Desconhecia o escritor, obrigado pela partilha.
ResponderEliminarBeijinhos
Obrigada, querida Maria, pela sua presença e comentário.
EliminarBeijinhos
Olinda
Muito bonito!
ResponderEliminarBjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube
Olá, Teresa
EliminarGrata pela presença.
Beijo
Olinda
Excelente e merecida evocação de Pepetela, uma das figuras de proa da literatura angolana e lusófona.
ResponderEliminarPena que a sua atividade política não se possa dissociar do período da guerra civil, que assolou o povo angolano, após a independência.
Abraço de amizade.
Juvenal Nunes
Olá, Juvenal
EliminarBom dia
A Guerra Civil Angolana, conflito que opôs o MPLA e a UNITA e que durou 27 anos, com pequenos períodos de paz, decorre de 1975 a 1991, 1992 a 1994 e 1998 a 2002.
Pepetela tomou parte na guerra de libertação. Foi-lhe atribuída a pasta da Cultura no governo constituído em 1975. Deixou o governo em 1982, para se dedicar à escrita, a tempo inteiro.
Grata pela sua opinião, meu amigo.
Abraço
Olinda