sábado, 3 de abril de 2021

O osso côncavo

Ó ímpeto do Espírito,
radícula que o vento despenteia e o músculo imprime
travejado por dentro!

Ó longilínea dilatação do tempo,
barca oblonga onde nascem os rios, lentos,
adornando seu plasma na noite!

Da tua anca de água negra, das cavernas
soltas no dorso do abismo,
é que te escarvo, osso côncavo,
a fauce rilhando de te lancetar a carne inútil,
o gume da estraçalhada língua, o sibilante enigma,
a curva suspensa e a sombra eléctrica,
ó força, ó inominado!

E de te ver!

Nem linha elíptica, tu a combinatória do que persiste
no desvão das palavras, quando ingénuas convocam
a eternidade, e nem trave rectilínea ou frontispício,
ou ensanguentada testa de fauno,
tu que só aceitas o esterno e o ilíaco
e a lava que se derrama dos pulmões furiosos;

E concebeste o indizível! Como dizer o que há no vazio
em riste dessa curvatura, oscilante eco sem memória
de ventre onde nem a águia se atreve ao vôo
e a serpente se desenrola até à evaginação de si?

Não te nomeio. Caminho. E o plano se inclina, grave,
ondulantemente terrível. Névoa ou pele ou pano,
já às raízes se contraem e pulsam, odoríferas, húmidas,
um enxamear de deuses espargindo a poeira;

E tu, intacto, flutuante onde ninguém te disse
e a palavra se acoita, espasmódica,
fetal. Seu silêncio enformando-o, ao osso,
côncavo.

-1953-

Poeta, autor teatral e jornalista moçambicano, 
com vários livros publicados.
"O Osso Côncavo e outros poemas", uma Antologia, (1980-2004), foi lançada pela Caminho, em 2005.
Em 2018 foi-lhe atribuído o prémio de Literatura em Língua Portuguesa, "Oceanos" (4º lugar) pela obra "O Deus Restante".
Segundo Pedro Mexias, aqui, tanto nos livros mais antigos como nos recentes, Patraquim assume-se herdeiro de uma tradição lírica africana (em língua portuguesa) que apresenta características como o poema breve de verso curto e a ode mais expansiva, as referências histórico-geográficas, um ‘nós’ identitário que pode ser um ‘nós’ de amigos como de povos, o poema político,...





É a primeira vez que trago este autor ao Xaile de Seda. Talvez este poema não seja o mais expressivo, à primeira vista, em relação ao tema que pretendo abordar, em síntese. Mas é uma Ode, e as odes têm aquele quê de trágico que transcende o quotidiano. E o que se passa no norte de Moçambique nada tem de normal.  

Há mais de três anos que se fala de Cabo Delgado, à boca pequena. Exceptuando-se Nuno Rogeiro que tem vindo a alertar incansavelmente, num programa de televisão, para a situação vivida por aquele povo, o resto da comunicação social pouco ou nada tem dito. E, de repente, faz parte das manchetes... Como diz o Da Literatura foi preciso que elementos estrangeiros fossem atacados para que o mundo começasse a tomar consciência do que lá se passa. 

Continuo a citar:

Situada no extremo Norte de Moçambique, Palma é uma das principais bases de exploração de gás natural, naquele que é o maior investimento privado de toda a África. Entre as petrolíferas internacionais envolvidas destaca-se a Total, presente em Moçambique há mais de 60 anos.

Por junto, existem neste momento setecentos mil deslocados em Cabo Delgado, uma das onze províncias de Moçambique. mais aqui
==

Boa Páscoa, meus amigos.

Abraços.

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Poema retirado - daqui
Veja Identidade, aqui, no "Xaile de Seda"
Imagem daqui - Leia a notícia e veja o video, por favor,
de Dezembro/2020.

18 comentários:

  1. Li e reli. Não conhecia o Autor e "quase" me surpreendeu. Mas não é verdade. Há neste trabalho muito sentir local, muita vida por viver, dor, Amor...
    Ir-me-ei debruçar sobre este personagem "novo" no meu ver.
    Muito grato pela "mostra" deste meu desconhecido (a descobrir) Luís Carlos Patraquim.
    Aproveito para desejar uma Santa e Feliz Páscoa.

    Beijo
    SOL da Esteva

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  2. Que lindo e quanto há pra descobrir...Gostei! FELIZ e ABENÇOADA PÁSCOA pra ti e teus! beijos, chica

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  3. Osso duro de roer, este "Osso Côncavo"...
    e tão penetrante que atinge a medula.
    e fica a doer...

    insuperável a ilustraçao - Mãe África dolorosa!...

    gostei muito, Olinda.
    inteligência e sensibilidade por aqui - aos molhos!

    beijo, minha Amiga
    parabéns!

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  4. Grandioso poema! Grata por dar a conhecer e ao seu autor, que não conhecia.

    Pobre povo exposto à ganância e mercê de interesses que escravizam e matam!

    Votos de uma Feliz e Santa Páscoa, amiga Olinda!
    Beijos.

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  5. Demorei algum tempo, para não dizer muito, a ler este poema. É que, talvez por ignorância minha, tive que me munir de um dicionário. Mas pronto. No final poderei dizer que gostei muito. É um poema delicioso. Deixo votos de uma Páscoa muito feliz, com muitas amêndoas, coelhinhos e ovinhos de chocolate, e muita, muita Saúde, Amor e Paz, extensivo à sua família e amigo/as.
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  6. Olinda,
    este poema e todo o desenvolvimento que aqui colocou, é revelador de uma grande sensibilidade e pertinência.
    A ganância e a maldade está tão banalizada que infelizmente já passa quase despercebida.
    Comovente o relato dramático de Isa Ali
    "Não somos animais. Os animais dormem na terra, fazem um buraco e dormem. Passámos três a quatro meses a dormir no chão, no cimento. Estamos a ficar doentes."
    Preocupamo-nos com o confinamento, e ver, pessoas a serem mortas e sem rumo, é mesmo para fazer uma reflexão profunda.

    Obrigada e um beijinho !
    Páscoa Feliz !

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  7. Não conheço!
    Um poema marcado pelo sofrimento.
    Pobre gente esquecida de todos!

    Abraço

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  8. Um osso côncavo a doer em todos nós que amamos África. A imagem da imensa tristeza daquilo que Moçambique está a passar. Uma mulher que chora porque é a única coisa que lhe resta fazer. Luís Carlos Patraquim, um grande poeta a merecer mais a minha atenção. Obrigada Olinda. Que tenha um domingo de Páscoa cheio de amor e conforto.
    Um beijo.

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  9. Sentido e profundo poema.
    Desconhecia o poeta, obrigado pela partilha
    Feliz Domingo de Páscoa
    Beijinhos

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  10. Feliz Páscoa, querida amiga Olinda!
    Neste dia de Ressurreição, venho lhe desejar paz e serenidade
    Depois volto pelo poema e aurora.
    Tenha uma Oitava de Páscoa abençoada!
    Beijinho pascal
    🐇🍬🌻🕊️😘

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    Respostas
    1. Boa noite de paz, querida amiga Olinda!
      Interessante é que, quando fui jovem, tinha muito desejo de fazer missão na África. Não me deixaram.
      É um sonho que não realizei.
      Entretanto, uma vez meu padrinho me disse que toda vez que olhasse o mar, pensasse que do lado de lá,estava um povo faminto de tudo... E, pelo menos, orasse.
      Tenha dias abençoados!
      Beijinhos carinhosos e fraternos

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  11. Tão triste a miséria extrema!...
    Não trata-se de anatomia
    Esse osso! É poesia
    Agoniada em poema
    Com um simbólico tema
    Em que tudo é simbolismo...
    Segundo imagino e cismo
    Esse poeta faz parte
    Do sofrimento e reparte
    A dor com amor e lirismo!

    Belo poema, Olinda! Parabéns! Feliz Páscoa, amiga! Abraço fraterno. Laerte.

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  12. Comovente, este teu post, querida Olinda! Não conhecia o poeta, mas, conforme indicas, fui ler o que Pedro Mexia escreve sobre ele : gosto de ouvir este senhor, no programa " Governo sombra " que, dificilmente perco. África não pára de chorar ...chora desde o tempo da escravatura e, em pleno sec. XXI, continua a ser escrava de interesses econômicos; exploram as suas riquezas sem a minima preocupação com o povo que continua a sofrer enormes humilhações. O que se está a passar em Moçambique é uma " vergonha " internacional e, Portugal pouco ou nada tem feito para ajudar um povo que fala a nossa lingua; as televisões pouca importância dão ao assunto ; fiquei chocada quando vi que o canal público da nossa televisão ia passar uma entrevista feita a Lula da Silva ; Olinda, tive de sair da sala! Aqui não está em questão a esquerda, o centro ou direita, está em causa peder-se tempo precioso com o maior corrupto da historia do Brasil, que está riquissimo, que defende a Venezuela, etc, etc. E Moçambique? Perde a tv pública esse tempo todo com o terror que o povo Moçambicano está a viver? Que eu saiba, não! Olinda, não perco um programa do Nuno Rogeiro e vejo o quanto ele tem alertado para o caso de Moçambique; gostava de ver a nossa tv pública a fazer um programa com o Nuno Rogeiro, mas, sem as pressas habituasi, deixando que ele falasse e mostrasse, calmamente, a situação dramática daquele povo. Mas, não...interessa muito mais o Lula da Silva! Coitado, também do meu querido Brasil, completamente sem opção, perdido entre um Lula e um desiquilibrado Bolsonaro. Tenho esperança que até às eleições ainda apareça alguém mais digno. Querida amiga, obrigada por teres trazido este tema, por nos teres alertado para o sofrimento do povo Moçambicano, povo que podemos considerar irmão. Alonguei-me muito, entrei num assunto que não vinha " à baila ", mas....já estás habituada, não ? Como diz uma Amiga, a Fê, num comentário acima, estamos nós preocupados com este isolamento e tanta gente, tanta criança completamente " jogados à sua sorte "...a morrerem nas mãos de " bandidos". Tão ingratos que somos!
    Beijinhos, Querida Amiga e que tenhas uma boa semana, com SAÚDE!
    Emilia

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  13. Fui agora ler a noticia, Olinda, mas não vi o video. ( faltou-me coragem...) O governo Moçambicano está a ter uma atitude muito estranha e, segundo uma missionária portuguesa ( vi na tv ), talvez não lhe convenha agir de outra forma. Se calhar, tem medo dos poderosos!!!! Ou então, como se diz no Brasil, recebe " propinas ". Boa noite, querida Amiga e, mais uma vez, obrigada por abordares este tema. Um beijinho
    Emilia

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  14. Agradeço a excelente partilha, amiga Olinda. Claro que desconhecia o autor e a obra, mas pelo que li nessa bela postagem, o poema tem uma grandiosidade que se pode ver na segunda leitura.
    Parabéns pelo belo post, um convite para que se estude com mais profundidade a obra desse talentoso poeta.
    Uma boa semana,
    Grande abraço.

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  15. Não conhecia este poema e é excelente.
    Tenho acompanhado e impressiona o silêncio da comunidade nacional e internacional.

    Tristemente apropriado. Um alerta magnífico.

    Beijo

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  16. Meu Deus, quanta dor, sofrimento, revolta estamos vivendo junto a essa infernal pandemia! Tanta dor e tantos ainda lucrando sob carcaças miseráveis, sem dar a mínima à dor dos povos mais necessitados, mais sofridos. Tá difícil de ver tamanha desumanidade. E assim vai caminhando a humanidade. Vergonha. Li o comentário da amiga Emília, e faço muito de suas palavras, as minhas.
    O poema é muito dolorido, não conheçia o autor.
    É isso, querida Olinda, dizer mais o quê? Nosso mundo é uma tragédia. E não levo fé alguma, muitas coisas revoltam.
    Um beijinho, querida Olinda, uma boa semana, amiga.

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  17. Querida Olinda,
    Já tinha passado os meus olhos por esta ode a um país cuja convexidade nos chama agora ao martírio de um povo. Acabei de ver as crianças desalojadas na areia de Cabo Delgado. Voltei para ler devagar e sentir a fascinante poética de Luís Carlos Patraquim.
    Dói-nos África. Excelente publicação!

    Beijos e saúde, minha amiga.

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