quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

"Criança, no meu tempo de criança"





ANTIGÜIDADES

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada ...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário alto, fechado,
impossível.

Era aquilo, uma coisa de respeito
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa,
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
— Valha-me Deus!...
As visitas ...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antigüidades ...

Até os nomes, que não se percam:
Dona Aninha com Seu Quinquim.
Dona Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita-alta, magrinha.
Lili-baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia croché.
E, diziam dela línguas viperinas:
"— Lili, é a bengala de D. Benedita".
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio ...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.

Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.

O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
-ai de mim-
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.



Cora Coralina, batizada Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, é um dos grandes patrimônios culturais de Goiás. Sua obra tardia, impõe-se por sua singeleza e autenticidade, na figura confessional de Aninha, em testemunhos de vívida e emocionante prosa poética: transumante de uma exemplaridade altruísta e otimista. Sofrida pelos preconceitos de seu tempo, pelas limitações de sua existência, cultivou um saudosismo sem pieguismo, certa de que os tempos atuais “são infinitamente melhores”, em sua crença na contemporaneidade e no futuro, não obstante as mazelas que soube apontar e denunciar.
...
Antonio Miranda




Mercedes Sosa
Gracias a la Vida que me ha dado tanto


“Mergulhar na obra de Cora, Aninha, a Mulher Guerreira, a Rapsoda, a Cigarra Cantadeira e Formiga Diligente (...) é uma lírica, telúrica e emocionante aventura: é um evocar de dados, lembranças, referências às nossas raízes e, acima de tudo, esplêndida imagem de uma vida forte e sabiamente vivida e muito bem expressa na sua palavra poética”. MARIETTA TELLES MACHADO


Nota: Prometi trazer um poema diferente de Cora Coralina, aquando da "Quinzena do Amor". Este é um poema que retrata uma época, uma crítica severa...a que não faltam os nomes próprios das personagens, "que não se percam", diz a autora.  

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Site de António Miranda: Poesia Ibero-Americana
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/poesia_de_iberoamerica.html

Título do post, "Criança, no meu tempo de criança", verso retirado do poema ora publicado

25 comentários:

  1. Que lindo poema e como é lindo quando crianças brincam como tal...Adoro Cora Coralina! Bjs,chica

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  2. Também me recordo muitas vezes daqueles bolos de forma que a minha querida mãe fazia.
    .
    Abraço poético
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  3. Um poema que não lembra uma infância muito feliz.
    Em minha casa não havia bolo todas as semanas mas também não havia ralhetes nem raspanetes, nem visitas, só família!
    Acho graça a estes poemas do quotidiano brasileiro.

    Abraço

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  4. Boa tarde Olinda,
    Gosto muito de Cora Coralina, já publiquei e li inúmeros poemas dela, mas este não conhecia. Um retrato de uma época repressora que marcou e mutilou gerações.
    Quanto a grande e saudosa Mercedes Sosa, simplesmente vereno esta música, para mim é quase um hino à vida e à liberdade.
    Um post perfeito, parabéns !

    Um beijinho

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  5. OLÁ! BOA NOITE... VIM FAZER UMA VISITINHA E TE DESEJAR UMA NOITE DE PAZ! ABRAÇOS.

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  6. Cora Coralina dá-nos neste seu poema narrativo uma visão realista de uma época em que as crianças eram sujeitas a muita repressão por parte dos mais velhos... Muitas delas cresciam sem saber o que era o carinho.
    Adoro ouvir Mercedes Sosa.
    Cuide-se bem minha Amiga Olinda.
    Um beijo.

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  7. Uma grande escritora.
    Não conhecia o poema, obrigado pela partilha.
    Bom fim de semana, querida amiga Olinda.
    Beijo.

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  8. Que belo poema de Cora Coralino. Parabéns por compartilhar. Bom final de semana.

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    1. Belo poema que bem descreve As insatisfações de crianças pouco valorizadas. Onde as visitas eram mais valorizadas. E o bolo a maior parte eram delas as visitas.

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  9. Como o Mundo é pequeno no tempo, nos actos e procedimentos!...
    Me identifico neste retrato poético duma época que não volta mais... mas despertam saudades e outras lembranças.
    Cora Coralina é um marco na escrita realista que ela terá vivido também.
    Escolha excelentemente apropriada deste texto Poético. Obrigado, Olinda.


    Beijo
    SOL da Esteva

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  10. É uma autora conhecida que escreveu a rudeza da vida. É a sua própria história.
    Gosto muito de ouvir esta canção, Bela voz de Mercedes Sosa!

    Boas escolhas.

    Beijos, querida Olinda.

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  11. Querida Olinda, esse poema de Cora eu não conhecia, que lindo! Li com um suave sorriso do começo ao fim, por tão bem contado. Li sua vida num fôlego, tão gostosa de ler numa poética aconchegante e convidativa. Um bolo numa casa onde haviam crianças pobres deve ser um sofrimento muito grande. Só Cora Carolina para contar com essa emoção.
    Que bom tê-la trazido aqui.
    Um feliz domingo pra você, com muita saúde.
    Beijo.

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  12. As memórias dolorosas de uma Grande Poetisa, que tanto adoro ler.
    Há quanto tempo não ouvia esta linda canção, obrigado por este post espectacular.
    Beijinhos

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  13. Parabéns, amiga Olinda, por esta magnífica ligação do comovente poema/desabafo de Cora Carolina (conheço mal a sua obra), com a voz esplêndida de Mercedes Sosa (que sempre me arrepia nesta canção).
    Beijo, boa semana, saúde para todos.

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  14. Gostei mesmo muito da sua publicação. Estive mais de dois meses sem
    computador, mas agora penso estar bem servido; é uma questão de pôr em dia e estudar todas as funcionalidades.
    Obrigado pela visita
    Abraço

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  15. Não escondo que este é um dos meus blogues preferidos, quer pelo cuidado que tem com as escolhas que faz como pela atenção dada na informação que ajuda a entender, por vezes o poema, por vezes o poeta.
    O cuidado em divulgar o melhor da língua portuguesa…
    Desta feita, diria tratar-se de um momento histórico em poesia, um momento nem sempre fácil para quem não se encontra ligado a um passado pleno de desafios…
    Um abraço

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  16. Faz pena
    A mulher prisioneira da criança
    E da fatia que lhe calhou do bolo desejado... Ainda para mais um bolo sem sabor

    Enfim romantismos...

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    Respostas
    1. olhe que não, caramelo, olhe que não!
      Leia melhor
      Talvez se surpreenda.

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  17. Quase uma ode, escrita com uma boa dose de bom humor, sempre bem-vindo...

    Gostei de ler, amiga Olinda.

    Boa semana e um Março feliz. Beijinhos
    ~~~~~~

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  18. Um ótimo post. Uma poeta de que gosto muito e uma voz prodigiosa num tema lindo.
    Demos então Graças à vida.
    abraço e saúde

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  19. Querida Olinda
    Sou fã incondicional de Cora Carolina. A escrita dela é uma verdadeira delícia. A riqueza de pormenores deste poema é notável. Descreve duma forma invejável como era a vida da criança doutros tempos (nalguns meios, claro!). Excelente!
    O vídeo é maravilhoso. A música é lindíssima (tão antiga e sempre actual) e a Mercedes Sosa interpreta-a divinalmente.

    Minha querida, quero agradecer toda a tua atenção e carinho durante a minha forçada ausência. Oxalá a saúde não te falte e tenhas um Março luminoso.

    Feliz Terça-feira e uma boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  20. " Tomando propósito ", tomar tento ", expressões muito usadas também na minha aldeia, num tempo em que as crianças não " tinham vez " e onde as " visitas " estavam em primeiro lugar: tudo era guardado, não fosse uma pessoa mais considerada aparecer por casa; tinha de haver, nem que fosse umas bolachinhas daquelas compradas na mercearia e colocadas naqueles cartuchos de papel, pois não as havia embaladas como hoje. Eram tempos dificeis e as crianças só poderiam comer uma bolacha, se por acaso sobrasse alguma depois das visitas deixarem a casa. Fazer um bolo? Na maioria das casas da aldeia esse luxo só em dias muito especiais, como por exemplo na Páscoa e só naquelas que já tivessem forno num fogão a lenha; a maioria só tinha lareira onde a comida era feita naqueles potes pretos de ferro, de três pés .Tudo isto recordei ao ler este belo " relato " da infância de Cora Coralina e concordo com ela...agora está tudo muito melhor e na minha aldeia as crianças já são tratadas com outro " respeito " e os bolos não faltam, nem para as visitas, nem para as pessoas de casa, aliás, arrisco a dizer que passou-se de um extremo a outro; saltou-se da mingua para uma fartura, por vezes beirando o desperdicio . Querida Amiga, obrigada, por este belo momento que me fez voltar àqueles tempos tão dificeis em tantos lares portugueses e também por partilhares esta voz maravilhosa de Mercedes Sosa. Saio sempre daqui muito mais enriquecida. Um beijinho e espero que estejam todos bem!
    Emilia 🙏 🌻


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  21. Bom dia Olinda,
    Conheço mal a obra de Cora Coralina e gostei imenso deste poema de tão real.
    Como as crianças sofriam e eram reprimidas.
    A música é belíssima.
    Gostei imenso do post, sempre com o seu inegável bom gosto e saber.
    Beijinhos e saúde.
    Ailime

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